30 Outubro 2012
De amigo a inimigo número 1 do prefeito
Cazuza apresentava um programa de rádio diário, o "Cheiro de Mato", das 5h às 8h. No primeiro ano do programa, apresentou basicamente músicas sertanejas. Depois, começou a apresentar temas políticos. O programa tinha a participação do deputado Albérico Cordeiro, de Alagoas, que ligava de Brasília para passar notícias. Nos últimos tempos, o radialista passou a fazer críticas à administração municipal. A Prefeitura era o maior anunciante da rádio - até o assassinato de Cazuza. O radialista chegou a ser suspenso por alguns dias por causa de uma discussão com o então prefeito Galindo, no estúdio da rádio, em fevereiro de 2000, um mês antes de sua morte. Galindo estava no ar, falando num espaço de entrevista pago pela Prefeitura para divulgação de suas atividades. Em seu programa, Cazuza havia acusado o prefeito de distribuir camisetas com o número 45 , do partido de Galindo, associado ao carnaval da cidade. Ele também fez reiteradas denúncias sobre o recadastramento irregular de eleitores pela Prefeitura.
No dia da discussão na rádio, Galindo respondia às acusações sobre irregularidades feitas pelo radialista. Cazuza invadiu o estúdio durante o programa e disse: "Prefeito, o senhor está mentindo". Conforme testemunhas, Galindo chamou o radialista de "maconheiro e homossexual", disse para se retirar e que acabaria de falar com ele fora do ar. Para seus assessores, teria dito que, se não fosse prefeito, matava Cazuza naquele dia mesmo. Desde então o relacionamento de Galindo e Cazuza desandou de vez. Numa cidade pequena como Canindé, com cerca de 17 mil habitantes, ser tachado de homossexual e acusado de usar drogas é motivo de fofocas e vergonha. Pouca gente fala sobre o assunto, e quando fala é com preconceito.
Cazuza foi suspenso, em princípio, por 30 dias. "No quinto dia, revoguei a suspensão", lembra Luiz Eduardo de Oliveira Costa, dono da rádio. A reprodução do discussão entre Cazuza e Galindo consta no inquérito que apurou o crime, como uma prova da ameaça pública feita pelo prefeito contra o radialista. A fita com a gravação não está mais disponível na Rádio Xingó FM, explicou o diretor da emissora, Paulo Costa Neto, filho do proprietário, porque as cópias existentes foram repassadas para a polícia e para rádios e emissoras de televisão locais na época da morte do radialista.
A briga pública dos dois, meses antes, seria inconcebível. Cazuza vivia com Galindo para cima e para baixo. Era o locutor oficial da Prefeitura, contam os amigos. Após o crime, o proprietário da Rádio Xingó FM, Luiz Eduardo de Oliveira Costa, entregou ao Ministério Público uma série de denúncias contra o então prefeito Galindo.
Em sua coluna dominical no Jornal da Cidade, de Aracaju, Costa já vinha fazendo críticas à administração municipal de Canindé. Sua mulher, Eliane Moura Moraes, foi lançada candidata à vice-prefeita da cidade, na chapa com o candidato a prefeito Orlando Andrade (na época, vice de Galindo). O apoio à candidatura de Eliane pode ter sido o motivo pelo qual Cazuza acabou se afastando politicamente de Galindo e direcionando ao prefeito suas críticas na rádio. Costa disse que não, que a candidatura da mulher foi lançada depois da morte de Cazuza, para se contrapor ao poder de Galindo.
Na madrugada em que foi assassinado, o radialista voltava de uma festa em comemoração aos quatro anos de fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). No dia anterior, havia acompanhado uma caminhada dos sem-terra de Poço Redondo, cidade vizinha, até Canindé. Depois, foi até a casa de Luiz Eduardo de Oliveira Costa. "Antes de sair, Cazuza ainda brincou que ia assinar uma carta usando meu sobrenome e o de minha mulher, porque se considerava da família", lembrou Costa. A carta era sobre as pichações "Cazuza 2000", feitas em muros da cidade - em alusão a sua candidatura a vereador. No documento, dizia ao juiz que as pichações haviam sido feitas por desconhecidos e que seriam apagadas.
Costa pediu a Cazuza que não fosse à festa à noite, onde deveriam estar o prefeito e seus assessores, e mandou o gerente da rádio levá-lo até sua casa. Costa disse que temia pela segurança do radialista porque várias pessoas ligadas ao prefeito andavam espalhando que, depois do carnaval, iam "fazer a festa deles". "Eu tinha medo que Cazuza fosse agredido, mas não morto", relatou.
Costa acredita que a morte de Cazuza, indiretamente, visava intimidá-lo. "Pensaram que matando Cazuza eu sairia correndo da cidade. Não podiam me matar, porque eu tinha muitas ligações políticas, inclusive com o governador - meu pai e o dele trabalharam juntos -, e a repercussão seria maior". Costa ainda se considera ameaçado. Além de ser o acionista majoritário da Rádio Xingó FM, ele é também secretário de Desenvolvimento Sustentável de Poço Redondo, a uns 30 quilômetros de Canindé, mas passa a maior parte do tempo em Aracaju, local em que, segundo ele, é onde realmente se tomam as decisões.
Menino pobre virou o radialista mais popular de Canindé
Desde os 10 anos de idade, o menino franzino gostava de brincar com um imaginário microfone. Pegava o cabo da vassoura e fazia de conta que era o narrador das partidas de futebol ou o animador das festas infantis. José Wellington Fernandes só ganhou o apelido de Cazuza depois de adulto, porque sua aparência lembrava um pouco a do Cazuza cantor e compositor irreverente de música popular brasileira. Como o cantor, José amarrava um lenço na cabeça quando animava os bailes e festas de Canindé de São Francisco. O cantor Cazuza tornou-se um símbolo de polêmica e coragem ao revelar-se portador do vírus da Aids, doença que causou sua morte em 1990. Por sua vez, Cazuza, o radialista, transformou-se num marco da luta contra a impunidade na cidade do alto sertão do Sergipe quando foi assassinado em 13 de março de 2000.
Em Canindé de São Francisco, ele era conhecido somente por Cazuza. Adorava fazer as vezes de técnico dos times de futebol infantil. Quando não estava na rádio, ia atrás das bandas para os shows que promovia na cidade. Generoso, transformou sua casa em um centro de doações de cestas básicas e cadeiras de rodas para os mais pobres. Pelo microfone da Rádio Xingó, fazia campanhas de arrecadação. Não foi por acaso que se candidatou duas vezes a vereador. "Ele falava que ia ser um grande político", lembrou a irmã Meire Fernandes Lima.
Filho de pais separados e pobres, era com Meire, um ano mais velha, que Zezinho Cazuza se dava mais. Eventualmente, quando ia a Aracaju, falava com o advogado João Santana Pinheiro, um dos 12 irmãos por parte de pai. "Cazuza era muito extrovertido, e quando bebia às vezes falava o que não devia", recordou Pinheiro. "Apesar disso, era pacífico, não tinha maldade".
Sempre que podia, Cazuza viajava os 167 quilômetros que separam Canindé de São Francisco até Propriá para visitar Meire. Na saída, dava um jeito de "esquecer" uns trocados em cima da mesa, dinheiro que servia para ajudar a pagar os estudos do sobrinho.
Foi na Propriá de ruas estreitas, em que todo mundo se conhece e as portas não têm trancas nem grades que nasceu Zezinho Cazuza. Ele gostava de voltar para lá. Em janeiro, data da padroeira, costumava fazer a cobertura dos festejos para a rádio. Menos em janeiro de 2000, porque disse que não podia sair de Canindé. "Senti que ele estava triste, como se tivesse um problema e não queria dizer", contou Meire. Cazuza não comentou os motivos, nem reclamou de ameaças ou cansaço. "Onde houvesse um baile e uma festa, ele era convidado. Estava em tudo, inclusive na política", lembrou. A fama de cidade violenta cultivada por Canindé de São Francisco amedrontava Meire, que recomendava cautela ao irmão.
Anléssia Alves Cruz, 27 anos, há cinco na Rádio Xingó FM, abriu um sorriso ao falar do antigo colega de trabalho. "Ele era muito doido, tudo para Cazuza estava bom, nada o aborrecia", descreveu ela, que mora na mesma rua em que morava o radialista. "Era como um irmão", disse Marcos André de Araújo, 26 anos, promotor de eventos na emissora. A fama de Cazuza é de que ele não ligava para dinheiro. Às vezes dava o que tinha e depois ia pedir emprestado para poder comprar comida, ou ia comer na casa de alguém. "Ele falava que a riqueza tinha de ser distribuída em Canindé, para diminuir a miséria do povo", destacou Anléssia.
Canindé: terra pobre, apesar da riqueza dos políticos
Localizada no alto sertão do Sergipe, a 200 quilômetros de Aracaju, capital do Estado, famosa por suas praias de água azul. A cidade de Canindé de São Francisco vive uma contradição permanente. É a segunda maior arrecadação do Estado de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) - em torno de R$ 2,5 milhões por mês (cerca e US$1.000.000) - devido à instalação em sua área da Hidrelétrica de Xingó. No entanto, os quase 17 mil habitantes vivem em meio à miséria.
Há uns 14 anos, Canindé de São Francisco era apenas mais um povoado na beira do Rio São Francisco, cercado da vegetação de caatinga, a única que resiste ao clima semi-árido. A população vivia basicamente da pesca, da caça e da criação de gado. Em 1987, começou a ser construída a Usina de Xingó - considerada uma das maiores do Brasil. As obras atraíram milhares de trabalhadores que se incorporaram à população original da cidade.
Os forasteiros que chegavam para construir a usina transformaram a paisagem de pobreza do sertão em uma de desenvolvimento aparente. Criou-se um projeto de irrigação, chamado Califórnia, num terreno desapropriado. A tentativa que inicialmente deu esperança ao povo sertanejo hoje prossegue tímida, com resultados duvidosos. Não há interesse político de investir em mais programas deste tipo. Os poços artesianos têm de ser cada vez mais profundos.
O sopro de progresso também não foi suficiente para provocar transformações na estrutura de poder da região. No sertão do coronelismo, em que uns poucos têm muito, as famílias tradicionais, mais antigas, continuaram se revezando na política. Foi nesse período que o empresário Genivaldo Galindo da Silva chegou a Canindé de São Francisco. Natural de Pernambuco, ele se instalou no Sergipe com uma empresa de locação de carros, trabalhando na obra da construção da usina para as empreiteiras. Tinha negócios também na Bahia. Passado algum tempo, foi candidato à prefeitura, perdeu a eleição, até finalmente conseguir se eleger há oito anos.
A disputa pelo poder em Canindé de São Francisco sempre esteve associada a registros policiais e à impunidade. Um dos líderes locais, Delmiro Miranda de Brito, que havia assumido a Prefeitura em 1992, foi encontrado morto em seu carro, em maio de 1993. O inquérito policial para apurar se foi realmente um acidente continua sem conclusão, e há fortes suspeitas de que alguém tenha encomendado sua morte.
Até hoje não foram punidos os responsáveis pela chamada Chacina de Canindé, em 20 de janeiro de 1995. Foram mortos Ademar Rodrigues de Assis, então presidente da Câmara de Vereadores, seu segurança, um mecânico e uma outra pessoa que estava em sua companhia.
Outra morte suspeita, em fevereiro de 2000, foi a de Maria Paulina dos Santos, 33 anos, grávida, que seria candidata a vice-prefeita de Canindé na chapa do ex-prefeito Jorge Luiz de Carvalho. Ela retornava de sua fazenda em Alagoas, quando seu carro teria derrapado e caído num abismo de 30 metros. Existem suspeitas de assassinato.
Na luta pelo poder, os meios de comunicação geralmente são usados como uma ferramenta para apoiar ou destruir políticos. É comum as emissoras de rádio e os jornais locais dependerem da publicidade paga pela Prefeitura, que compra espaços para divulgar suas atividades. Sobretudo as rádios servem de palanque para futuros candidatos a cargos públicos - incluindo os próprios jornalistas e radialistas. Cazuza tentou se eleger duas vezes como vereador. Na segunda tentativa, morreu antes de disputar o cargo.
"Ainda vai morrer um bocado de radialistas", prevê Marco Antônio Soares Passos, superintendente da Polícia Civil no Estado do Sergipe. A previsão sombria de Passos se baseia no fato de alguns radialistas utilizarem os meios de comunicação para fazer carreira política e, como constatou Passos, "acabarem perdendo o parâmetro da responsabilidade do bom jornalismo". Numa região em que tudo se resolve pela bala do revólver, os riscos são enormes.
Passos lembra que em Canindé de São Francisco a violência é direcionada. Não há assaltos a mão armada, como nas grandes capitais. Os crimes são de ordem política. O Estado do Sergipe está cercado por áreas conturbadas, como a região de produção de maconha, no Estado de Pernambuco, ou o vizinho Estado de Alagoas, que tem fama de ser o berço da pistolagem, onde todo o mundo anda armado. "Sergipe tem muita seca e pobreza, é terra de aventureiros e de ausência do poder público", descreveu Passos. Por conta dessa realidade, predominam os crimes de mando e a agiotagem. O superintendente da Polícia Civil lembra de uns 15 assassinatos por encomenda somente nos últimos quatro anos.
Violência vem dos tempos dos desbravadores
Há quem diga que a violência na região vem desde o tempo dos desbravadores. O geógrafo cearense Raimundo Eliete Cavalcante viveu metade de seus 58 anos no sertão e se dedicou a estudar movimentos sociais de origem camponesa. Ele explicou que o Rio São Francisco, eixo dos povoamentos, foi também o canal por onde entrou a crueldade. Primeiro, dos portugueses contra os índios, que foram usados como mão-de-obra armada para ajudar na disputa pelo domínio do território. Os grupos que conseguiam sair da tutela dos coronéis transformavam-se em bandoleiros ou cangaceiros.
Os primeiros cangaceiros de que se tem notícia surgiram no século 18. Alguns historiadores os consideram simplesmente bandidos. Para outros, são justiceiros na luta por seus direitos frente aos poderosos. O cangaço foi um movimento originário principalmente de Pernambuco e do Ceará. Mas também ficou conhecido em Sergipe, porque ali o cangaceiro Lampião, figura lendária, arregimentava seus companheiros. Foi na Grota do Angico, próxima a Canindé de São Francisco, que ele e seu bando foram mortos pelas polícias volantes em 1938. O local virou uma atração turística.
O maior hotel de Canindé contrasta com a simplicidade das casas e ruelas da cidade, leva o nome da hidrelétrica e tem um mirante de onde se avista a Usina de Xingó. No mirante, há estátuas em tamanho natural de Lampião e de sua namorada, Maria Bonita, além de outros cangaceiros do grupo. No lado oposto estão as figuras do padre Cícero, que ganhou fama como mediador entre os pobres, os cangaceiros e o governo, e o sanfoneiro Luiz Gonzaga, considerado o rei do baião. Essa mistura de religião, luta, cultura popular e música, tendo ao fundo o poderio econômico, é a cara da terra em que morreu o radialista Cazuza.
Polícia não tem dúvidas e considera crime solucionado
Para a polícia, o crime contra Zezinho Cazuza está solucionado, ainda que o ex-prefeito Genivaldo Galindo da Silva, acusado de ser o mandante, esteja foragido, e que o jovem suspeito de ter acompanhado o pistoleiro no momento do assassinato jamais tenha sido encontrado. "O menor desapareceu, acreditamos que possa ter sido exterminado", diz Marco Antônio Soares Passos, superintendente da Polícia Civil no Estado do Sergipe. Até dezembro de 2001 não havia notícias de que a polícia tivesse descoberto alguma nova pista sobre o paradeiro de Galindo, nem do jovem conhecido por Nininho.
O inquérito policial sobre a morte de Cazuza foi conturbado desde o princípio. "A polícia sempre soube que era um crime de mando", diz Passos. Em menos de 48 horas os policiais chegaram ao suposto autor do assassinato, conhecido como Zé de Adolfo. Comprovaram que a arma e o carro pertenciam a Zé de Adolfo. Mas o caso foi tão rumoroso e as pressões foram tantas, que o superintendente afastou o delegado encarregado inicialmente da apuração, Jocélio Franca Fróes.
Segundo Passos, para a polícia não há dúvidas quanto à autoria do crime. Alguns fatos, entretanto, prejudicaram as investigações e confundiram a opinião pública. Um deles foi o poderio econômico de Galindo, e o outro foi sua posição política, já que exercia o cargo de prefeito. "Ele comprou alguns policiais e até parte da imprensa. E quando mantivemos o pedido de prisão, Galindo tentou desmoralizar a polícia", afirma o superintendente. O resultado é que, do pedido de prisão do ex-prefeito, feito ainda em 2000, até o decreto de sua prisão preventiva passou-se um ano, tempo suficiente para Galindo se reeleger como prefeito de Canindé de São Francisco. Ao ser decretada sua prisão preventiva, ele fugiu.
Passos acredita que o ex-prefeito foi avisado com antecedência de sua ordem de prisão. Disse que a polícia fez várias incursões pelo país em busca de Galindo, com o apoio da Polícia Federal. Há suspeita de que o ex-prefeito tenha fugido do país em um avião monomotor. "Cumprimos a nossa parte, mesmo com os desgastes e contrariedades em relação à opinião pública", observou o superintendente.
O procurador-geral de Justiça do Sergipe, Moacyr Soares da Motta, também está seguro de quem é o mandante do crime. "Decretamos as prisões, agora esperamos que a polícia tente localizar os foragidos", sustentou. Terminado o período de intervenção na Prefeitura de Canindé, pedido pela Procuradoria Geral, assumiu a vice-prefeita, Rosa Maria Fernandes. "Nosso papel não é de polícia, é de persistir no processo para impedir a impunidade". Motta avalia que o crime está resolvido, ainda que o acusado ainda não tenha sido preso. Para aqueles que insistem que somente com a prisão de Galindo a morte de Cazuza será punida, ele ofereceu um consolo: "Uma pessoa condenada e foragida não está totalmente impune. Acaba pagando pelo crime porque, para continuar fugindo, passa o resto da vida sendo extorquida de tudo que é lado".
Esse pensamento não é suficiente para os amigos e familiares de Cazuza. "O crime ainda está impune, porque quem mandou matar está livre. A prisão não vai trazer a vida de Cazuza de volta, mas quem fez, tem de pagar, de uma forma ou de outra", diz Meire Fernandes Lima, irmã do radialista.
Morte do radialista trouxe à tona outros crimes
A morte de José Wellington Fernandes, o Cazuza, ainda permanece envolta em controvérsias devido ao complicado jogo de poder da região. Mas graças à repercussão causada por seu assassinato, Canindé de São Francisco viu-se subitamente no noticiário nacional, e isso permitiu desvendar uma série de falcatruas e rombos financeiros das quatro últimas administrações na Prefeitura, que somam cerca de R$ 50 milhões (cerca de US$21.000.000). Deste total, pelo menos 70% foram gastos quando Genivaldo Galindo da Silva era prefeito da cidade, segundo os cálculos dos auditores.
Em 27 de março de 2000, o procurador-geral de Justiça do Estado do Sergipe, Moacyr Soares da Motta, pediu a intervenção por seis meses em Canindé de São Francisco para que fossem verificadas as acusações de irregularidades na Prefeitura. No mesmo dia, Galindo renunciou ao cargo de prefeito e fugiu quando foi decretada sua prisão preventiva pela suspeita de envolvimento na morte de Cazuza.
Entre as irregularidades constatadas pelo Tribunal de Contas estão: empréstimos por antecipação de receita; licitações favorecendo empresas sem registro, beneficiando amigos ou o próprio prefeito; adulteração de notas fiscais; contratação de uma cooperativa prestadora de serviços em que os cooperados recebiam pelo trabalho sendo também funcionários públicos; doação de imóveis a particulares e aquisição dos mesmos, depois, por valores maiores; além de serviços de engenharia prestados por uma funerária.
O procurador geral salientou, no pedido de intervenção, o nível de envolvimento da família de Galindo em cargos importantes da administração, por exemplo, a atual vice-prefeita, Rosa Maria Fernandes Feitosa, vivia com Genilson Chaves Galindo, filho do prefeito, e o presidente da Câmara de Vereadores, Júnio Silva Galindo, é sobrinho do prefeito. Genilson e Júnio estão presos.
Coincidentemente, o advogado de defesa do sobrinho de Galindo é Aderval Vanderlei Tenório, 70 anos, que defende também José Ferreira de Melo, o Zé de Adolfo, acusado de ser o pistoleiro que matou Cazuza.
O advogado nega que haja qualquer influência de Galindo na defesa de Zé de Adolfo. "No começo podiam pensar que era Galindo quem me pagava para defender Zé de Adolfo", disse Tenório à SIP. "Mas defendo Zé de Adolfo de graça, porque sei que é um homem injustiçado e porque o pai dele me pediu. Ele foi deputado em Alagoas e o pai dele sempre confiou em mim, é um grande amigo".
Zé de Adolfo foi preso logo depois do crime. Num primeiro momento, falou que Galindo era o mandante. Depois, negou, e por fim manteve a acusação numa acareação com o prefeito. Tenório, seu advogado, alega que essas mudanças de opinião de seu cliente aconteceram porque ele foi pressionado pela polícia. Segundo o advogado, Zé de Adolfo só teria tido coragem de falar "a verdade" quando saiu da delegacia e pediu garantias ao juiz. "Então ele disse que nunca matou ninguém, não participou da morte de Cazuza, nem tinha motivos para matar, porque se dava bem com o radialista", observou Tenório, que tenta reverter os indícios existentes no processo contra Galindo para Luiz Eduardo de Oliveira Costa, dono da Rádio Xingó FM onde trabalhava Cazuza.
O advogado acusou ainda de envolvimento no crime a pessoa que disse ter vendido a arma para Zé de Adolfo. Ele seria um ex-vigia de Luiz Eduardo de Oliveira Costa. "Pedi a arma para verificar o histórico, mas ela desapareceu. Há um interesse em manter o inquérito da morte de Cazuza como está, para promover uma mudança política em Canindé", diz Tenório. Ele citou outros fatores que, a seu ver, provam a existência de um complô para incriminar o ex-prefeito:
"O delegado Jocélio, afastado de seu cargo, disse que houve uma reunião da cúpula da polícia para direcionar o caso contra Galindo. Eles pensaram: vamos pegar Zé de Adolfo, porque é alcoólatra e vai confessar. O próprio cunhado de Cazuza falou que o relacionamento do radialista era excelente com Galindo, mas não com Luiz Eduardo".
De fato, no inquérito consta também o nome de Jorge Moreira dos Santos como o de um cunhado de Cazuza que viveria com sua irmã Josefa Vânia da Silva. Santos declarou à polícia, em dezembro de 2000, que uns 15 dias antes de morrer Cazuza andava desconsolado e chorando muito porque não podia ficar ao lado do prefeito por imposição da rádio. Cazuza teria dito a Jorge que estava com medo, sem mencionar do quê. Nem Meire Fernandes de Lima, a irmã mais próxima de Cazuza, nem João Santana Pinheiro, irmão por parte de pai, confirmam conhecer Santos ou Josefa. "Essa pessoa deve estar ganhando algo de Galindo para dizer isso", observou Meire.
O superintendente da Polícia Civil do Sergipe, Marco Antônio Soares Passos, admitiu que interveio na investigação, afastando o delegado Jocélio Franca Fróes, porque havia muitas pressões. Passos acusou abertamente Galindo de ter subornado policiais para se livrar da prisão.
O relacionamento de Luiz Eduardo de Oliveira Costa, dono da Rádio Xingó FM, com Galindo, antes do crime, variava conforme os interesses políticos. Quando o então prefeito foi preso em flagrante, em Feira de Santana, na Bahia, em julho de 1999, acusado de posse ilegal de armas de uso exclusivo das Forças Armadas, Costa interveio para soltá-lo. Na ocasião foram encontrados com Galindo e seus homens que o acompanhavam três metralhadoras, pistolas 9 mm e revólveres calibre 38. Nenhuma dessas armas estava registrada. Costa disse que, como tinha um bom relacionamento com Galindo e com o governador Albano Franco, telefonou para o chefe de governo estadual e pediu que recebesse os filhos do prefeito. "O governador disse que já sabia e que ia encaminhar o caso para a Secretaria de Segurança Pública", lembrou.
O prefeito foi liberado e argumentou que os homens que o acompanhavam eram seus seguranças e as armas eram para defesa pessoal, porque tinha muitos inimigos em Canindé. Para Luiz Antonio Araújo Mendonça, 51 anos, 1º Promotor de Justiça da Capital, nesse caso houve a omissão do Estado como um todo (magistratura, Ministério Público e polícia). Mendonça, encarregado também do Controle Externo da Polícia Civil, foi designado pelo procurador geral para apurar os crimes em Canindé.
Por precaução, Mendonça anda armado, porque um promotor foi morto em 1998 enquanto investigava o envolvimento de juízes e políticos em crimes na região. O próprio Mendonça foi ameaçado de morte quando apurava a participação de policiais civis no extermínio de crianças e adolescentes, há 17 anos. Seu trabalho nos últimos 10 anos permitiu ainda desarticular quadrilhas de roubos de gado envolvidas em homicídios, mandando para a prisão mais de 100 pessoas. O promotor considera que houve falhas no inquérito de Cazuza. "Não se pode parar de investigar quando há suspeita de participação de outras pessoas", reclamou. "É isso que gera a impunidade". Porém, reconhece que agora ir atrás dos demais envolvidos não é prioridade, "porque há processos muito mais graves na região".
O jornalista Luiz Eduardo de Oliveira Costa é outro que eventualmente anda armado e evita ficar muito tempo em Canindé, apesar de ser dono da Rádio Xingó FM. "Comecei a fazer oposição a Galindo por causa do desastre administrativo em que se encontrava a cidade. Como Cazuza tinha uma ligação muito forte comigo, passou a criticar também", conta. O advogado de Zé de Adolfo acusou Costa de ter outro interesse por trás das denúncias, uma vez que a mulher de Costa, Eliane Moura Moraes, foi lançada candidata a vice-prefeita de Orlando Andrade (então vice-prefeito de Galindo) nas eleições para a Prefeitura em 2000, depois da morte de Cazuza.
No dia em que Cazuza morreu, Costa foi para a rádio e disse que Canindé devia sofrer uma intervenção. Depois, entregou um dossiê ao Ministério Público com denúncias de irregularidades cometidas pelo prefeito e seus assessores. "Não denunciei Galindo antes porque não tinha os elementos necessários. Além disso, até a primeira administração do prefeito, ele estava melhorando a educação, mas em seguida trouxe uma quadrilha de fora e começou a abandonar o município", observa o jornalista.
O proprietário da Rádio Xingó FM rebate as acusações de que tinha interesse na morte de Cazuza e que o radialista andava descontente com atrasos de salário. "Ele era como um filho", lembra Costa.
A influência do ex-prefeito se mantém em Canindé, apesar de sua fuga. Costa contou que Galindo tinha uma locadora de veículos em nome de terceiros. Ao locar um carro em Canindé, a repórter da SIP ficou sabendo, por acaso, que o motorista do carro alugado tinha trabalhado na Secretaria de Agricultura na administração de Galindo. Disse que foi afastado do cargo no período da intervenção no governo, mas pretende voltar em breve, num cargo de assessor na mesma secretaria.
Mesmo foragido, Galindo dá entrevista
Se a polícia não conseguiu encontrar Galindo, o jornalista Messias Carvalho, 38 anos, teve mais sorte. Mesmo foragido, Galindo deu uma entrevista a Messias, que é superintendente do jornal Ação Popular, de Aracaju, locutor da Rádio Liberdade FM no programa Liberdade Sem Censura e apresentador do programa Liberdade de Expressão, na TV Caju. Messias já havia entrevistado Galindo na época em que era prefeito. "Não tenho certeza de que o ex-prefeito foi o mandante da morte de Cazuza. Por enquanto, ele é só acusado", diz o jornalista.
Messias apela para que haja justiça: "Para a polícia, o inquérito está concluído, mas como não há condenados e o acusado alega inocência, fica a expectativa de que a verdade apareça ou seja confirmada". Segundo o jornalista, a negociação para conseguir o contato com o ex-prefeito durou um mês e meio. O local do encontro foi mudado várias vezes.
Na entrevista, publicada na edição de 26 de agosto a 1º de setembro de 2001 do jornal Ação Popular, Galindo jurou inocência, tanto em relação à morte do radialista, como nas acusações de irregularidades administrativas. Afirmou que hoje vive na miséria e quer se entregar, desde que com garantias de que não vai ser morto pela polícia e de que seus filhos serão soltos. Sobre o assassinato de Cazuza, ele deu a seguinte declaração:
"Eu fiquei muito surpreso com essa morte porque, em primeiro lugar, Cazuza era uma pessoa que tinha um salário da prefeitura. Era uma pessoa que toda vida viveu na minha casa, onde tomava café, almoçava e jantava, devido ao salário baixo que ele tinha. Era amigo meu e da minha família. Essa morte foi só para me prejudica. Usaram a morte de Cazuza o tempo todo (e se juntaram Luiz Eduardo com os Andrade) para ver se me derrubavam nas eleições. Mas, felizmente, o povo sabe que é mentira e o povo que votou em mim, votou novamente dando uma prova de que tudo o que o pessoal dizia não era verdade".
No final da conversa, o ex-prefeito se despediu com um apelo: "Me sinto estragado, acabado. Deus é grande, a Justiça de Deus tarda, mas não falha",
Em Canindé de São Francisco, onde muita gente depende do emprego nos órgãos públicos e a figura do ex-prefeito e seus familiares permanece onipresente, predomina o medo de falar. "Rolou a dúvida se foi ou não o prefeito", diz a estudante Martinha Ricardo de Souza, 14 anos. "Cazuza era gente boa, não fazia mal a ninguém, mas sobre a morte não sei nada...o povo faz comentários...aqui acontece mesmo essas coisas", afirmou Noel Vieira da Silva, 38 anos, que há nove anos vende suco de cana na praça central de Canindé, próximo à sede da Prefeitura. "Comentaram que era o prefeito, mas ninguém tem prova concreta", fala Maria José Mariano de Souza, a Branquinha, dona de uma loja de roupas no centro e recepcionista.
Maria José freqüentou muitas festas organizadas por Cazuza. Ainda assim votou em Galindo, mesmo depois da morte do radialista e de o prefeito ter se tornado o principal suspeito do crime: "Na verdade, Canindé é como uma família, se conhece todo mundo. A maioria das pessoas não acreditou que foi Galindo, achou que era apenas uma campanha política da oposição".
FALHAS NO PROCESSO
1. A demora na conclusão do inquérito policial permitiu a Zé de Adolfo, suspeito de ser o pistoleiro que matou Cazuza, prestar depoimentos divergentes. Primeiro ele disse que o mandante foi o prefeito Galindo, depois negou.
2. A demora em decretar a prisão preventiva de Galindo possibilitou sua fuga.
3. A falta de uma equipe técnica para consolidar provas permitiu que permaneça dúbia a identificação dos envolvidos na morte de Cazuza.
Fonte: 1º Promotor de Justiça de Aracaju, Luiz Antonio Araújo Mendonça, designado pelo procurador-geral de Justiça para apurar os crimes em Canindé de São Francisco
DÚVIDAS QUE PERMANECEM
1. Onde está Galindo? Já foragido, o ex-prefeito Galindo deu uma entrevista a um jornal e a uma rádio de Aracaju, divulgada em agosto de 2001. Se o repórter conseguiu chegar a Galindo, por que a polícia não o encontra?
2. Onde está Nininho, acusado de ter dirigido o carro do pistoleiro Zé de Adolfo no dia do crime? Há suspeitas de que ele tenha sido morto. Por que a polícia não encontrou nenhuma pista de seu paradeiro até agora?