30 Outubro 2012
Impunidade, 17 anos depois
Quase 17 anos depois da sentença que o condenou à prisão pela morte do jornalista Mário Eugênio Rafael de Oliveira, o policial civil Divino José de Matos, conhecido como Divino 45, conseguiu mais uma vez escapar da Justiça. Apesar de ter sua prisão decretada desde março deste ano, até o dia 23 de julho de 2001 ele encontrava-se foragido. "Não estamos parados, tentamos a quebra do sigilo telefônico", disse o delegado Elói Nonato da Silva, da Delegacia de Capturas e Polícia Interestadual, encarregado da prisão. O delegado admite que não foi montado nenhum esquema especial para a prisão de Divino, mesmo sabendo que ele tentava fugir da decisão da Justiça há tanto tempo. "A Justiça não nos comunica que decisão vai tomar, nem o dia e a hora", justificou.
Vários policiais apontaram Divino como sendo o pistoleiro que disparou os sete tiros contra a cabeça do jornalista. Divino, no entanto, nunca admitiu sua participação. Até poucos dias antes de o Supremo Tribunal Federal confirmar, em 8 de maio de 2001, sua sentença de 14 anos de prisão em regime fechado, Divino passeava livremente pelas ruas. A Unidade de Resposta Rápida da SIP conversou em julho deste ano com moradores de Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, conhecida pelo alto índice de criminalidade. Soube que ele foi visto nos meses anteriores próximo ao local onde moram seus parentes, mas os moradores do local disfarçam e procuram não falar muito quando se menciona seu nome.
O próprio advogado de Divino, Geraldo Côrtes, reconhece que houve uma falha que facilitou a fuga de seu cliente. "Se o Tribunal quisesse prendê-lo, não devia avisar. Saiu publicado nos jornais que o Tribunal negou seguimento aos recursos", observou Côrtes, em tom divertido. O advogado defendeu ainda Iracildo José de Oliveira, outro acusado do crime. Iracildo morreu em 1999, depois de passar um período na prisão.
Após a decisão do Tribunal, Côrtes falou à URR que pretendia entrar com mais um recurso extraordinário para livrar Divino da pena, como vem fazendo nos últimos anos, alegando, entre outras coisas, que seu cliente tem problemas psicológicos. "Divino perdeu a saúde e deixou de fazer a Faculdade de Direito que cursava. Está guerreando há 17 anos", disse o advogado. Côrtes pede um segundo julgamento e fundamenta sua tese no fato de Divino ter sido condenado apenas com um voto de diferença, por 4 a 3. Além disso, o advogado diz que a capa usada pelo assassino, que continha resquícios da massa encefálica de Mário Eugênio - uma das provas apontadas pelo inquérito - não serve em Divino. "Com um segundo julgamento, ele seria preso na hora, se fosse o caso", analisa.
O advogado argumentou ainda que os processos judiciais contra o secretário de Segurança Pública da época, coronel Lauro Melchíades Rieth, e o coordenador da Polícia Especializada, delegado Ary Sardella, apontados inicialmente no inquérito como suspeitos de serem os mandantes, foram arquivados. "A denúncia fala com clareza que o coronel mandou Sardella repassar a ordem para Iracildo e Divino. Não existindo a figura do mandante, não existe a figura do mandatário", explica.
O procurador de Justiça de Brasília, João Alberto Ramos, era assessor da Procuradoria Geral de Justiça em 1985. Atuou em segunda instância no caso - foi ele quem examinou as acusações contra Rieth e concluiu que o suspeito devia ser excluído do inquérito. "Não havia nenhuma prova de que o coronel tivesse sido o mandante do crime. De fato, ele não gostava de Mário Eugênio, mas não fazia segredo sobre isso", disse Ramos. "Muitas autoridades não gostavam do jornalista". Uma vez que não houve mandante, conforme o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, não havia sentido manter a denúncia contra Sardella, acusado de ser o intermediário.
Na visão do procurador, se alguém ficou impune, foi Divino. Para Ramos, a Lei Processual Penal precisa ser aperfeiçoada porque permite recursos protelatórios como os usados pelo advogado de Divino. Ramos foi membro do Conselho Penitenciário e examinou também os pedidos de livramento condicional de dois envolvidos na morte de Mário Eugênio: o sargento Nazareno e o cabo Couto. "Ambos cumpriram pena e preencheram os requisitos para serem colocados em liberdade devido ao bom comportamento na penitenciária", informou.
As acusações contra o então secretário de Segurança surgiram logo após o crime. Senadores e deputados se manifestaram, responsabilizando Rieth pelo assassinato. O Correio Braziliense publicou na capa do jornal de 13 de novembro de 1984: "Congresso acusa Rieth". A demissão do secretário foi pedida por representantes do Congresso Nacional que o acusavam de crime de omissão, por não ter protegido o jornalista sabendo que ele recebia ameaças de morte e por ter determinado, meses antes, a apreensão de sua arma, sob a alegação de que era exclusiva do Exército. Isto teria deixado Mario Eugênio mais "vulnerável" às ameaças.
Em entrevista coletiva registrada pelos jornais de 13 de novembro de 1984, Rieth disse que o porte da arma havia sido conseguido de forma fraudulenta e acrescentou que havia sido impossível garantir a proteção policial para o repórter 24 horas por dia.
Alguns deputados, na época, lembraram o envolvimento do coronel na prisão ilegal, tortura e assassinato do sargento do Exército Manoel Raimundo Soares, em 1966, em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Como conseqüência, foi aberta na ocasião uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembléia Legislativa para apurar a denúncia. O "Caso das Mãos Amarradas", como ficou conhecido, provocou a demissão do secretário de Segurança do Rio Grande do Sul. Rieth era superintendente das polícias do Estado.
O mesmo jornal de 13 de novembro informava que "Rieth chegou a reconhecer que o caso da execução do repórter pode se tornar insolúvel, mas assegurou que está pessoalmente empenhado em apurar tudo. Prometeu apresentar os resultados do inquérito à Justiça em 30 dias". O radialista Roberto Cavalcanti, conhecido como Perdigueiro, atual diretor da Rádio Cultura, em Brasília, considera Rieth um dos melhores secretários de Segurança que a capital já teve. "Ele sabia de tudo o que se passava, tomava providências", argumenta Cavalcanti, que inclusive depôs a favor do delegado Ary Sardella durante as investigações, quando trabalhava na TV Brasília. "A Justiça alcançou as pessoas envolvidas no crime de Mário Eugênio, foi tudo apurado com a maior transparência", afirma. Coincidentemente, ele apresenta atualmente, na rádio, o programa Distrito Zero, das 6h45min às 7h30min. O programa tem o nome que Mário Eugênio deu ao espaço que ocupava na redação do Correio Braziliense. Também o policial civil aposentado Ivan Baptista Dias, conhecido como Kojak, que presidiu a Associação dos Agentes de Polícia (Agepol) de 1983 a 1987, ressalta que tudo o que acontecia na polícia, naqueles tempos, passava por Rieth. "Ele era muito temido e, por ser militar, tinha uma boa relação com os militares", analisa.
Mário Eugênio, em princípio, mantinha um relacionamento amigável com o secretário de Segurança Pública. Nem os colegas, nem os policiais com quem ele convivia explicam ao certo quando essa relação começou a ficar estremecida. Alguns acreditam que a situação mudou quando Mário Eugênio publicou as primeiras denúncias envolvendo integrantes do Exército. Segundo Kojak, o secretário Rieth teria pedido ao jornalista para evitar a publicação dessas informações. Ao mesmo tempo, Mário Eugênio começou a divulgar as reivindicações de Kojak como presidente da Agepol. Em seus artigos, comparava os baixos salários na Polícia Civil com o aumento da criminalidade em Brasília.
"Mário Eugênio começou a fazer mais denúncias quando descobriu que a polícia estava praticando ações de bandidos", relata o colega Renato Riella, que foi editor executivo do Correio Braziliense e chefe imediato de Mário Eugênio. "Ele ficou sabendo que jovens vinham sendo usados por policiais e integrantes do Exército para roubar carros. Quando os marginais criavam algum problema, eram mortos". Mário Eugênio descobriu que havia uma quadrilha de ladrões de carros que desmontava automóveis ou os levava para a Bolívia, algumas vezes voltando com drogas. Soube também que a base dessa quadrilha eram integrantes da Delegacia de Furtos de Veículos de Brasília e do Pelotão de Investigações Criminais do Exército (PIC).
O assassinato, em abril de 1984, do chacareiro João Batista de Paula Matos, de Três Vendas, lugarejo de Luziânia, em Goiás, a cerca de 50 quilômetros de Brasília, foi um dos primeiros casos em que Mário Eugênio denunciou a polícia abertamente. O repórter descreveu que militares do PIC e policiais da Delegacia de Furtos de Veículos mataram uma pessoa inocente na busca do carro roubado de um tenente. Entre eles estavam o tenente do Exército, Ricardo de Paula Avelino, além de Nazareno, Iracildo, Couto, Loiola e Dirceu Perkoski (que participou da primeira tentativa para matar Mário Eugênio), todos posteriormente acusados de envolvimento na morte do jornalista.
Segundo o que foi publicado no Correio Braziliense, quando soube do crime de Três Vendas, Mário Eugênio levou o caso ao secretário de Segurança que, em tom desafiador, respondeu: "Foram os militares do PIC que mataram o chacareiro. Se você tiver coragem, publique." Mário Eugênio publicou.
Pela ousadia demonstrada em seus artigos, seguiram-se retaliações. Durante um tempo, foi baixada uma ordem proibindo Mário Eugênio e outros jornalistas de entrar nas delegacias. Depois, seu carro foi apreendido porque se considerou que havia irregularidades com a placa e em seguida policiais foram à sede do Correio Braziliense confiscar sua arma.
Em julho de 2001, a URR procurou Rieth em Brasília, onde mora atualmente. Depois de quatro tentativas de estabelecer contato telefônico, uma mulher que não quis se identificar disse que o coronel havia mandado dizer que não tinha interesse em conversar sobre o caso.
Em seu depoimento à polícia, em 20 de fevereiro de 1985, Rieth lembrou que não teve divergências com Mário Eugênio durante os primeiros dois anos e seis meses de seu governo. Mas a partir do momento em que o repórter lhe comunicou que denunciaria a polícia por seu envolvimento em vários tipos de crimes, começaram os desentendimentos. "Se fatos errados existiam", disse Rieth, "teriam de ser atribuídos aos verdadeiros responsáveis". Pediu ao jornalista que lhe apresentasse provas para punir os responsáveis. Diante das denúncias publicadas no Correio Braziliense sob o título "Marginais executados em queima de arquivo", de acordo com o depoimento de Rieth, o secretário pediu direito de resposta.
O Correio Braziliense teve um papel fundamental na investigação da morte de Mário Eugênio. Publicou todos os dias, durante meses, pelo menos uma página sobre o assunto. O repórter policial Otávio Ribeiro, o Pena Branca, do Rio de Janeiro, amigo de Mário Eugênio, foi chamado para ajudar na cobertura. "Fomos muito pressionados", lembra Riella, um dos encarregados das reportagens. Seu carro foi perseguido e ele recebeu telefonemas anônimos.
Com a prisão de alguns dos envolvidos, a morte do jornalista foi caindo no esquecimento. Mas persiste um clima de impunidade. "O crime não foi solucionado, só identificaram quem apertou o gatilho. Teria sido solucionado se tivessem achado o mandante", acredita Paulo Roberto Rafael de Oliveira, 46 anos, irmão de Mário Eugênio.
Falhas no processo
O ex-promotor Paulo Tavares Lemos acompanhou as investigações sobre a morte de Mário Eugênio desde o início e lembra das dificuldades enfrentadas. "Suspeitava-se de que havia uma sonegação de informações por parte da Secretaria de Segurança", contou Lemos. "Quando o secretário era solicitado a colaborar, vinha com teses diferentes, querendo investir em diligências fora de Brasília".
O fato de que policiais teriam abordado um veículo suspeito na noite do crime só vieram à tona e começaram a ser investigados depois da troca do governo, em março de 1985. Lemos acredita que, se as autoridades tivessem comunicado antes esse fato (do qual tinham conhecimento, como ficou comprovado no inquérito, pelos depoimentos colhidos), a investigação teria sido agilizada. Apesar de ter considerado os indícios suficientes para denunciar o secretário de Segurança, Lauro Melchíades Rieth, e o delegado Ary Sardella, Lemos ficou surpreso ao saber que a Procuradoria Geral da Justiça pediu o arquivamento do processo em relação a Rieth.
Ele acredita que havia contradições. O advogado de Rieth entrou com um pedido de habeas corpus para impedir a ação penal por falta de provas e a nulidade do processo porque o Tribunal do Júri do Distrito Federal seria incompetente para julgar um secretário de Segurança. O Supremo Tribunal Federal negou o habeas pelo primeiro motivo - portanto, havia indícios suficientes para provar a autoria intelectual. Entretanto, o concedeu pelo segundo, reconhecendo que a competência para julgar o caso era do Tribunal de Justiça. A atribuição para atuar no processo, em razão da decisão, passou a ser da Procuradoria Geral de Justiça. Aí houve um impasse. O Tribunal anulou o processo, "a partir da denúncia", não deixando claro, assim, se o procurador-geral de Justiça devia ratificar ou não a denúncia que havia sido feita pelo Ministério Público. O procurador demorou a dar seu parecer e, na dúvida, decidiu arquivar o processo. No caso de surgirem outras provas de participação no crime, tanto Rieth como Sardella poderão ser denunciados novamente.
Outro equívoco apontado por Lemos está relacionado a Iracildo, um dos envolvidos no crime, que foi condenado, num primeiro momento, por homicídio culposo (sem intenção de matar). Por este crime, teria de cumprir pouco mais de um ano de prisão. O Ministério Público recorreu, e Iracildo foi julgado de novo, sendo condenado por homicídio doloso (com intenção de matar), com pena de nove anos de prisão. "Esses equívocos jurídicos acabaram transformando o inquérito em pizza", acredita o advogado Paulo Cesar Tolentino, que atuava como delegado da Delegacia de Homicídios na época da morte de Mário Eugênio e se considerava muito amigo do jornalista.
O único fato positivo resultante do caso, na opinião do jornalista Renato Riella, foi a "purificação" da polícia de Brasília, graças à repercussão da prisão de policiais envolvidos no crime contra Mário Eugênio. Riella a considera hoje a melhor polícia do Brasil, com menos registros de tortura e corrupção.
Marão era um repórter polêmico e irrequieto
Mário Eugênio Rafael de Oliveira, ou Marão, como era chamado entre amigos, foi, durante muito tempo, o único repórter policial do jornal Correio Braziliense em um período de transição política em que o Brasil - e, por conseqüência, os jornalistas - tentava se livrar das amarras de 30 anos de ditadura, censura e torturas, para estabelecer as bases de uma democracia após os governos militares instalados com o golpe de 1964.
Brasília, sede da Presidência da República, não era a cidade que é hoje, com uma população estimada em 227.456 habitantes. "Na época, havia muita gente das Forças Armadas trabalhando na delegacia de polícia para colher informações", explica o policial civil Ivan Baptista Dias, o Kojak, atualmente aposentado. "Muitos militares portavam carteira de policial civil e de delegado". Dias foi apelidado pelo próprio Mário Eugênio de Kojak pela semelhança com o personagem careca do seriado de tevê. O jornalista criou vários apelidos para figuras públicas.
Naquela época, os crimes ganhavam muito mais destaque e por isso apareciam nas páginas escritas e editadas por Mário Eugênio, recorda a jornalista Ana Maria Rocha, que foi casada com ele de 1978 até 1980. O jovem repórter passou a ser conhecido na cidade por seu estilo contundente de apresentar a notícia. "Ele era constantemente ameaçado, porque expunha o lado marginal de Brasília, mas tinha um senso de Justiça. Uma vez, foi criticado por ter mostrado o lado humano de um bandido, seus problemas familiares e a vida sofrida", lembra Ana Maria.
Na Rádio Planalto, Mário Eugênio ficou famoso com o "Gogó das Sete", programa líder de audiência, que tinha este nome porque era patrocinado pelo leite Gogó. Por este motivo também, a primeira emboscada planejada para eliminar Mário Eugênio (que falhou) foi chamada de "Operação Leite". Às vezes, exagerava ao usar termos sensacionalistas no programa de rádio.
Foi processado, acusado de injúria, calúnia e difamação por delegados que denunciou. Nunca chegou a ser condenado. "Não defendo policial corrupto, não defendo policial ladrão, não defendo policial que bate em trabalhador. E lugar de bandido, para mim, é na cadeia ou na cova", registrou o Correio Braziliense como sendo uma das frases do jornalista.
As matérias de Mário Eugênio tinham muitos detalhes, mas ele também fazia alguns floreios, recorda o colega Carlos Honorato, que trabalhou no Correio Braziliense e agora é editor executivo do Jornal de Brasília. Alguns jornalistas criticavam Mário Eugênio pela relação promíscua estabelecida com suas fontes na polícia. "Ele assistiu a execuções e torturas, por isso escrevia com tantos detalhes", observou um repórter que preferiu não se identificar. O delegado aposentado Paulo Cesar Tolentino diz que costumava sair freqüentemente com Mário Eugênio para beber à noite, e confirma que ele "chegou a fotografar algumas sessões de tortura e me mostrou as fotos. Mário Eugênio queria ter um furo de reportagem, pretendia publicar um livro. Estava fazendo um dossiê". Tolentino foi responsável pela investigação da morte de Mário Eugênio na Delegacia de Homicídios, em Brasília. Depois do crime, o dossiê foi procurado na casa do repórter e na redação. Tolentino afirma que as anotações e fotos não foram encontradas.
Quando o jornalista entrou em atrito com o secretário Lauro Melchíades Rieth e começou a publicar denúncias envolvendo policiais e militares, Tolentino o avisou que sua vida estava em perigo. "Mário Eugênio tinha uma medalha de São Jorge e sempre dizia que o santo ia protegê-lo."
Ana Maria sabia que Mário Eugênio acompanhava de perto as operações policiais, embora ele não conversasse a respeito. Mas também ressalva que havia muito preconceito, na época, em relação aos setoristas de polícia. "Ele era discriminado pelos que se diziam 'da esquerda'", observa. Ao candidatar-se a deputado pelo PDS, considerado um partido de direita, Mário Eugênio reforçou esse estigma. "Mas ele não se metia com material político e ideológico, cobria 100% de polícia", afirmou Renato Riella, que foi editor executivo e chefe do jornalista no Correio Braziliense.
Mário Eugênio fazia toda a página policial no Correio Braziliense, desde foto (que ele às vezes tirava), texto, até edição. Próximo a sua mesa, colocou uma placa que dizia: "Editoria de Polícia - Distrito Zero", que virou a sua marca. Às vezes, irritado com os motoristas, assumia ele mesmo a direção do carro na hora de ir apurar os dados. Na semana de sua morte, tinha acertado tirar férias em dezembro. Depois de viajar, ele e Riella definiriam um novo esquema de trabalho, porque o editor o considerava subaproveitado. A idéia era que começasse a fazer reportagens maiores, mais profundas.
Ana Maria tem certeza de que, se estivesse vivo, Mário Eugênio estaria hoje denunciando os crimes de corrupção no governo. "Teria sido o mesmo repórter competente em qualquer editoria, porque respirava jornal o tempo inteiro", enfatiza. No início, até conciliava o trabalho com um hobby, o motociclismo. O estilo meio playboy desagradava alguns colegas. Filho de fazendeiros, dinheiro para ele não era problema. Bonito, tinha fama de conquistador. O programa na rádio lhe rendeu um fã-clube. Com o aumento da carga de trabalho, na rádio e no jornal, acabou diminuindo as saídas de moto. De madrugada, antes de se recolher, ia ver se estava tudo certo com sua página no jornal.
Desde criança, Mário Eugênio era uma pessoa inquieta e persistente e na vida adulta manteve a personalidade forte. "Foi esse temperamento que o levou à morte", acredita o irmão, Paulo Roberto Rafael de Oliveira. Todos sabiam que Mário Eugênio recebia ameaças de morte. Mas, como eram muito freqüentes, o jornalista não dava importância. Quando Paulo Roberto ficou sabendo que ele andava mexendo com gente poderosa, aconselhou-o a deixá-los "quietos". "Mário me disse que, se fosse eliminado, todos saberiam que foi por causa do Lauro (Lauro Rieth)", testemunhou Paulo.
A mãe de Mário Eugênio, Maria Eres Rafael de Oliveira, 68 anos, não entende por que não se chegou ao nome do responsável por planejar o assassinato. "Parece que a falha vem da Justiça. Se na época que estava todo mundo querendo saber quem foi não chegaram ao mandante, será que agora a Justiça vai agir?", questiona. Ela mesmo responde: "Minha esperança é só em Deus, porque aqui acho que não se consegue, não."
O Brasil em que Mário Eugênio morreu
Na época em que Mário Eugênio morreu, o Brasil se preparava para sair de um período de militarismo que durou 30 anos. Os militares assumiram o poder em 1964, com um golpe. Na presidência entre 1979 e 1985, o general João Baptista Figueiredo deu início ao processo de transição para uma democracia. Em 1983, começaram as primeiras manifestações a favor de eleições diretas para presidente. A emenda que previa a volta das eleições diretas foi derrotada no Congresso. Mas o governador mineiro Tancredo Neves, líder da oposição, formou uma chapa composta pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e pelo Partido da Frente Liberal (PFL) e foi eleito presidente por um Colégio Eleitoral em janeiro de 1985. Tancredo adoeceu, não chegou a tomar posse, e morreu em 21 de abril do mesmo ano. O vice, José Sarney, assumiu o cargo. A volta da democracia, no entanto, só foi oficializada com a promulgação da nova Constituição brasileira, em 1988 (quatro anos depois da morte de Mário Eugênio).
Como o crime ocorreu
Eram 23h55min do dia 11 de novembro de 1984. O repórter Mário Eugênio Rafael de Oliveira acabara de gravar mais uma edição do programa "Gogó das Sete", que iria ao ar na manhã seguinte, uma segunda-feira. Estava saindo do prédio da Rádio Planalto, no Setor de Rádio e Televisão Sul de Brasília. Quando chegou ao estacionamento, próximo a seu carro Monza, recebeu sete tiros na cabeça.
O operador de rádio Francisco Resende, o Chiquinho, que havia gravado o programa com Mário Eugênio, ouviu os tiros e, de longe, avistou apenas um homem com chapéu, vestindo um casaco escuro, com uma arma comprida na mão, correndo. Depois viu um carro branco afastar-se rapidamente.
O inquérito policial apurou que os tiros saíram da espingarda calibre 12 e do revólver Magnum, calibre 38, de Divino José de Matos, conhecido como Divino 45. O apelido, ironicamente, foi dado pelo próprio Mário Eugênio devido à reconhecida pontaria do policial e a sua habilidade com as armas. As balas especiais do revólver, do tipo hollow point, dilaceraram o crânio do jornalista. Seu corpo foi encontrado estendido próximo ao carro. A explosão provocada pelos tiros lançou pedaços da massa encefálica de Mário Eugênio para o asfalto e deixou resíduos na capa usada pelo matador.
Conforme apurou a polícia, Divino fugiu em um Fusca branco dirigido pelo cabo David Antônio do Couto. Ali perto, havia outros policiais que forneceram suporte para o crime. O agente policial Iracildo José de Oliveira e o sargento Antônio Nazareno Mortari Vieira acompanhavam tudo, no interior de um automóvel Fiat do Pelotão de Investigações Criminais do Exército (PIC). Estavam prontos para atuar no caso de uma eventualidade. Outra equipe de apoio era constituída pelos agentes de polícia Moacir de Assunção Loiola e Aurelino Silvino de Oliveira. Os dois simulavam estar no local para prender um suspeito de furto. Encontravam-se num carro Chevette preto, de procedência ilícita, normalmente usado pelo sargento Nazareno.
As investigações chegaram ao nome do coronel Lauro Melchíades Rieth, então Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, como suspeito de ser o mandante do crime. De acordo com as apurações da polícia baseadas em depoimentos de testemunhas, Rieth teria pedido a um de seus auxiliares, o delegado Ary Sardella, na época titular da Coordenação de Polícia Especializada (CPE), para escolher os executores, e o sargento Nazareno foi encarregado de definir quem participaria da emboscada contra o jornalista. Tanto Iracildo como Divino eram subordinados à CPE. Além disso, foi comprovado que todos os demais envolvidos no crime haviam participado de uma operação policial desastrada próximo à cidade de Luziânia, em que resultou morto, por engano, um chacareiro.
Mário Eugênio havia publicado matérias no Correio Braziliense e falado no programa "Gogó das Sete", várias vezes, sobre esse crime. Dizia que o chacareiro havia sido assassinado por engano por militares do PIC com a ajuda da Polícia Civil do Distrito Federal. Insistia que o secretário Rieth sabia de tudo e não tomava providências. Nos dias anteriores a sua morte, denunciou a utilização ilícita de carros roubados pela Polícia do Distrito Federal, e a atuação da polícia no que denominou de Esquadrão da Morte. O próprio Rieth admitiu a existência do Esquadrão em entrevista concedida 15 horas depois do crime.
Em outubro de 1984, o mesmo grupo já havia feito uma primeira tentativa de matar Mário Eugênio. Divino, Iracildo, Loiola, Nazareno, Couto, Aurelino e o cabo do Exército, Dirceu Perkoski, foram até o estacionamento próximo à Rádio Planalto, mas o jornalista não apareceu. Além disso, o movimento no local era muito grande. Apelidada de "Operação Leite" (porque Mário Eugênio apresentava o programa "Gogó das Sete", patrocinado pelo leite Gogó), a investida foi transferida para o dia 11 de novembro. O cabo Perkoski ficou de fora na segunda vez.
Depoimentos colhidos pela equipe que investigou o crime indicam que a segunda "Operação Leite" foi organizada na casa do sargento Nazareno, no sábado, 10 de novembro de 1984, durante um churrasco de que participaram Iracildo, Couto e Aurelino. No dia seguinte, eles voltaram à casa do sargento, sob o pretexto de darem continuidade à churrascada, junto com Divino e Loiola. Dali saíram para cumprir a operação. Para despistar, passaram antes no PIC. Simularam estar participando de uma missão oficial em que Nazareno e seus subordinados fariam uma campana para prender suspeitos de praticar assaltos na Praça dos Namorados. Na verdade, daquele lugar tinham uma boa visão do prédio do Correio Braziliense e poderiam ver quando Mário Eugênio saísse do jornal e fosse até a Rádio Planalto.
Um fato inesperado quase atrapalhou os planos e, mais tarde, foi decisivo para ajudar a desvendar o crime. Enquanto Nazareno e seu grupo faziam a campana, uma equipe do Grupamento de Operações Especiais (GOE), em sua ronda, estranhou a presença de quatro homens de boné no Chevette preto, uma vez que o lugar era freqüentado apenas por casais. Os três agentes do GOE abordaram os ocupantes do carro e reconheceram Iracildo. Como era gente "da casa", foram embora. Para evitar suspeitas, Nazareno pediu, pelo rádio, o envio de um outro veículo, que foi entregue a Loiola. No novo carro, um Fiat, Nazareno se dirigiu ao lugar onde Mário Eugênio seria morto para dar apoio aos policiais que estavam ali. O Chevette se manteve na Praça dos Namorados para manter a simulação anterior.
Relatos dos envolvidos confirmaram que Divino disparou os tiros contra Mário Eugênio e que lavou a capa e a peruca usadas no crime assim que chegou ao PIC. Nazareno providenciou que o revólver fosse desmontado e suas peças jogadas no Lago Paranoá. A peruca, a capa e outros objetos ficaram escondidos num barracão.
No inquérito, fica claro que, quando souberam da morte de Mário Eugênio, os agentes do GOE que haviam avistado Iracildo e outros policiais no carro estacionado na Praça dos Namoradores suspeitaram que isso pudesse estar relacionado ao crime e comunicaram o fato a seu superior, o delegado Ângelo Neto. Este, por sua vez, avisou o delegado Benedito Gonçalves e o secretário de Segurança, Lauro Rieth. Os agentes receberam a orientação de não comentar com ninguém sobre a presença de Iracildo e outros policiais naquela noite próximo ao local onde foi assassinado o jornalista.
O fato, porém, chegou ao conhecimento dos repórteres que cobriam o caso para o Correio Braziliense. O jornal recebia denúncias anônimas, por telefone e por escrito, praticamente todos os dias. Também os delegados amigos de Mário Eugênio se empenharam em ajudar. A constatação de que Rieth foi informado, mas não tomou nenhuma providência, sobre a presença de um grupo de policiais de campana no local, na noite do crime, serviu de base para o promotor denunciá-lo como suspeito de envolvimento no caso.
Quem vai querer denunciar os mandantes?
Em julho de 2001, a URR se encontrou com um dos participantes da operação que resultou na morte de Mário Eugênio. Depois de cumprir pena na prisão, hoje vive com sua família numa cidade do interior do Brasil. Simpático, embora apreensivo, ele conversou durante quase duas horas em sua casa. Não quis que seu nome fosse divulgado porque ainda teme represálias, mas contou sua versão.
"Éramos todos muito jovens, na faixa dos 20 anos. E era uma época em que ser militar dava mais status. Se fosse hoje, eu não teria me envolvido. Não que eu fosse impedir a morte de Mário Eugênio, mas talvez não estivesse dentro daquele contexto. Somente cinco minutos antes do assassinato eu tive a certeza de que iam matá-lo. Na primeira Operação Leite, achei que iam apenas prendê-lo.
O motivo da morte de Mário Eugênio não foi a denúncia feita por ele sobre o assassinato, por engano, do chacareiro de Três Vendas. Nós tínhamos a certeza de que não ia acontecer nada conosco em relação ao crime da chácara, até porque existia uma hierarquia e a história iria parar no cargo mais alto. Só ficamos sabemos que matamos a pessoa errada umas duas semanas depois, mas o delegado encarregado de apurar o crime nos deu as balas que tinham ficado cravadas nas paredes. Loiola (Moacir de Assunção Loiola, que participou da morte do chacareiro em Três Vendas e de Mário Eugênio) se suicidou porque era o mais fraco.
Havia interesse em eliminar Mário Eugênio. Mas quem vai querer, ainda hoje, se meter com um delegado como Ary Sardella? O coronel Rieth talvez tenha sabido de tudo. Quem vai denunciar? Não quero falar sobre quem seria o mandante. Tenho filhos, não quero mais envolver minha família, que sofreu demais.
Divino 45 (Divino José de Matos) está solto porque foi o único que negou ter participado. O advogado me disse que, se eu negasse, talvez também não fosse preso, porque se a pessoa não reconhece a culpa, sempre resta uma dúvida. Mas eu preferi falar. Divino não vai ser preso porque tem as costas quentes. Os policiais de mais de 30 anos não vão querer prendê-lo. Era ele quem podia falar sobre o mandante. Ele e Iracildo (que está morto).
Mário Eugênio participou de muitas operações da polícia, assim como outros repórteres da época. Quando Mário Eugênio morreu, outros assumiram o lugar dele na rádio."