26 Setembro 2009
Um longo caminho até a Justiça e o fim da impunidade
Chovia muito quando estive pela primeira vez em Itabuna, na Bahia, em março de 2000. Era uma viagem inicial em busca de documentos, pessoas que tivessem conhecido e testemunhas que pudessem explicar como havia ocorrido o assassinato de Manoel Leal de Oliveira, editor e fundador do jornal A Região, em 14 de janeiro de 1998.
Chovia muito quando estive pela primeira vez em Itabuna, na Bahia, em março de 2000. Era uma viagem inicial em busca de documentos, pessoas que tivessem conhecido e testemunhas que pudessem explicar como havia ocorrido o assassinato de Manoel Leal de Oliveira, editor e fundador do jornal A Região, em 14 de janeiro de 1998. Nessa época fui apresentada pela primeira vez aos personagens de um drama policial com pitadas de filme de bandido e mocinho, mas sem final feliz. Um dos jornalistas que trabalhava com Oliveira, Daniel Thame, me apelidou de Eva Luna. Como a personagem de Isabel Allende, disse. Eva, aquela que sugou a história do outro e que passou a ser também sua. A história de Oliveira, daquele momento em diante, passou a fazer parte da minha.
Quem foi Manoel Leal de Oliveira? Em busca de qualquer e todos os detalhes, descobri que o dono de jornal que denunciou políticos e policiais corruptos, polêmico em sua atuação, era também um homem comum que gostava da cor vermelha. Ironia: foi essa cor que manchou sua camisa preferida no dia do crime. A escrivaninha em que trabalhava havia sido mandada pintar de vermelho, os marcos da porta, e até com a irmã ele implicava porque ela não usava a cor viva.
Oliveira seria um personagem comum, em uma cidade como tantas outras, não fosse por sua morte brutal. Adorava jogar Banco Imobiliário e brincar de mágica com o sobrinho, Fábio. As quatro pontes de safena e a barriga denunciavam que já não tinha o mesmo pique de sua juventude. Fotos antigas, amareladas ou desbotadas, arrecadadas com a família, mostravam um Oliveira mais interessante: com o escritor Jorge Amado, quando muito jovem; com o ex-governador do Estado, Antônio Carlos Magalhães. Comunista convicto, havia quem garantisse que até o guerrilheiro Carlos Marighella ele abrigou na sede onde funcionava a gráfica do jornal.
Conheci a sede de A Região onde Oliveira ficava a maior parte do tempo e onde nunca se acostumou ao computador. Tinha uma velha máquina de escrever em que despejava as idéias rabiscadas em pedaços pequenos de papel. Anotava para não se esquecer. No dia da morte, anotou, na frente de um funcionário, Roque X-9. Roque, o nome apontado como suspeito pela Polícia Federal de Ilhéus. A sede em que Manoel ficava não tinha mais sua cara, já começava a assumir a de Marcel Leal, filho que voltou à terra natal para retomar o espaço do pai no jornal após sua morte.
Estas lembranças viraram textos e serviram para traçar o perfil do jornalista que ficou registrado em um arquivo do computador com o nome Caso Manoel Leal de Oliveira. O primeiro na lista de mais de 20 que venho investigando pela SIP dentro do projeto Impunidade ao longo dos últimos nove anos.
Os detalhes da história de Oliveira me voltaram à lembrança quando, 11 anos depois de denúncias, apelos a autoridades, entrevistas e processos por não se calar, Marcel Leal foi chamado para receber uma placa em homenagem a seu pai em uma cerimônia repleta de radialistas. Entre outras autoridades, o ato foi importante porque contou com a presença do atual governador do Estado da Bahia, Jaques Wagner, no último dia 21 de setembro de 2009, em Salvador, Bahia.
Como aconteceu nas inúmeras vezes em falei com ele desde 2000, mais uma vez, do palanque improvisado, Leal pediu Justiça de fato: que os mandantes do crime sejam investigados e punidos. A cerimônia encomendada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos como parte de um acordo amistoso com o governo brasileiro é simbólica. Ainda haverá uma indenização em dinheiro à família. Mas é a sugestão, feita pela própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de reabrir o caso e investigar os autores intelectuais da morte, atendendo à demanda de Leal, o que realmente vai dar sentido à luta pelo fim da impunidade neste caso e nos demais em andamento no Brasil.
Encerrada a cerimônia, os familiares de Oliveira presentes na cerimônia vieram um a um se apresentar e agradecer o fato de uma entidade internacional ter se empenhado para que a morte do jornalista não caísse no esquecimento, como acontece com tantos outros crimes. Como se fazer Justiça fosse exceção, e não regra..
Quando os agradecimentos começaram a se repetir por parte dos familiares de Oliveira, pensei em outro caso impune definido como emblemático pelo diretor da Associação Baiana de Imprensa, Agostinho Muniz: a morte de Nivanildo Barbosa Lima, encontrado morto junto à represa de Paulo Afonso em 1995. Lima trabalhava para um jornal de igreja, tinha 27 anos, e ousou denunciar grupos de extermínio na região. Quiseram fazer crer que havia se suicidado, quando o laudo apontava morte por asfixia.
A reação dos familiares de Oliveira foi semelhante à surpresa que vi no rosto da mãe de Lima, uma senhora humilde e de corpo frágil, quando fui a seu encontro em Paulo Afonso para contar que a SIP se interessava em fazer com que o inquérito fosse retomado. Sua incredulidade era provavelmente a mesma de todos os que sofrem injustiças seu filho finalmente mereceria atenção e, por isso, para ela, eu era um anjo enviado por Deus. Gosto de pensar que a SIP, com o projeto Impunidade, tira o sono de quem se achou no direito de tirar a vida dos outros. E talvez contribua para que, mais do que a justiça divina, seja a justiça dos homens, ainda na terra, que vai garantir um pouco de integridade e coragem a quem já perdeu até a esperança.