30 Outubro 2012

Não se esqueçam de Yabrán

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Poucas horas depois da súbita morte de Alfredo Yabrán, um funcionário do Departamento de Estado me confessou em seu escritório de Washington: "Todos sabem que ele se suicidou, mas ninguém sabe quem o fez".
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Pensava em voz alta, procurando desvendar, com poucos elementos, como peças soltas de um quebra-cabeças incompleto, a trama sinistra que se iniciou em fevereiro de 1996, com o rosto do empresário mais influente da Argentina e menos conhecido do mundo surpreendido pela primeira vez em público na capa da revista Noticias, e que resultou em janeiro do ano seguinte, no brutal assassinato do autor da foto, José Luis Cabezas. Três anos depois do assassinato a sangue-frio, cometido nas mesmas areias em que Yabrán havia sido flagrado enquanto caminhava à beira-mar com sua mulher, o Tribunal de Recursos de Dolores, província de Buenos Aires, apontou Yabrán como mentor do crime e condenou oito de seus guarda-costas à prisão perpétua. Yabrán morreu sem ouvir o veredicto: matou-se com um tiro na boca, em um tipo de haraquiri, em 20 de maio de 1998. Estava sozinho, depois de permanecer 15 dias na clandestinidade, em sua casa em San Ignacio, a 70 km de Larroque, província de Entre Ríos. Seu fim foi tão incrível que a imaginação popular insiste em acreditar que esteja vivo, em uma praia parecida a Pinamar, cenário da foto e do assassinato de Cabezas, com outro rosto, outra identidade, outra vida. Mas uma coisa não elimina a outra. Para os argentinos, descrentes, desconfiados e assolados desde o berço pela incompetência da justiça, ficou a sensação de que a ação, em que foram processados os assassinos de Cabezas, pode desbaratar algumas redes de corrupção que se infiltram no poder. Já se fala do segundo round, promovido pela família. Nessa etapa, pelo menos, predominou, mais do que a vontade política, a queixa constante do povo: "Não se esqueçam de Cabezas". Prédica que obrigou o governo de Carlos Menem, com o qual Yabrán tinha vínculos comerciais nas áreas de serviços postais, portuária e de segurança privada, a se afastar dele. Deixaram-no sozinho após ser recebido a Casa Rosada pelo então chefe de Gabinete, Jorge Rodríguez, enquanto, quase ao mesmo tempo, o presidente ficava ofendido pela simples menção de seu nome em uma coletiva de imprensa que concedia em Nova York. Nada mais grosseiro, aliás, do que a imagem de Yabrán com a foto que mostra apenas os olhos de sua vítima. Olhos de um brilho intenso contrastando com olhos que já não vêem. Mortes curiosas em locais também curiosos. Calmos, fazendo a sesta. Sesta interrompida pelo som de trovões. De balas, onde não houve guerra. Que selaram o fim de um inocente e a imolação de uma pessoa procurada. A trajetória de Yabrán A silenciosa trajetória de Yabrán nas esferas do poder começou na ditadura militar, continuou durante o governo democrático de Raúl Alfonsín e alcançou seu apogeu com Menem. Não se podia prever o que desencadearia, tal como bola de neve, a denúncia de Domingo Cavallo, inventor da equivalência entre a moeda argentina e o dólar norte-americano, no Congresso, sobre a existência de máfias no poder. Foi uma verdadeira catástrofe para um império forjado no mistério. Máfias das quais, segundo o então ministro da Economia, que não era simpatizante de Menem, Yabrán era um dos chefes. Ou o chefão? Motivo mais do que suficiente para ser alvo legítimo da imprensa. Por mais que tentasse impedir, segundo os boatos, que tirassem fotos de seus filhos em eventos escolares. Estava justificado, então, o interesse de Cabezas, em particular, e o da Noticias, em geral. "O presidente o teme", chegou a dizer Cavallo. Yabrán testemunhou durante sete horas no Congresso, diante de senadores e deputados inquietos por seus vínculos com o poder e, sobretudo, pela origem de sua imensa fortuna, em 10 de abril de 1997, depois de criticar Cavallo pela administração da privatização do Correio. O testemunho deixou mais perguntas do que respostas. Yabrán tinha outro inimigo, que também havia se distanciado de Menem depois de ter sido vice-presidente do país em seu primeiro mandato: o governador da província de Buenos Aires, Eduardo Duhalde, que promoveu uma investigação policial que resultou em um significativo aumento do crime e, que resultou no assassinato do fotógrafo, cometido por ex-membros da força. O assassinato não poderia ter sido pior para Duhalde, que perdeu as eleições legislativas de 1997 e as presidenciais de 1999. Perdeu mais do que isso com o assassinato de Yabrán, que enfraqueceu seu discurso político. Em relação a Cabezas ficou uma frase que, ainda que não proferida pelo governador, deve ter passado pela cabeça de muitos de seus partidários: "Fiquei com um cadáver". Cadáver que não deixou a polícia se vangloriar de ser a melhor polícia do mundo, segundo suas próprias palavras, e que provocou que fosse imediatamente oferecida uma recompensa de 100.000 dólares por informações que levassem ao esclarecimento do crime. Esse valor triplicou em poucos dias, após ter sido solicitada até a participação do FBI na investigação. Cadáver que foi encontrado algemado e queimado, junto com o automóvel e a câmara fotográfica, em um local afastado de Pinamar, cidade balneária a 340 km ao sul de Buenos Aires. Segundo testemunhas, Cabezas foi pego na porta de sua casa às 5h15 de 25 de janeiro de 1997. Voltava de uma festa que deveria terminar com um café da manhã na residência do empresário Oscar Andreani. Foram a seu encontro quando tentou sair do carro. Os homens o intimidaram, agredindo-o mais de uma vez no pescoço, enquanto outros mantinham a vigilância de um Fiat Uno que haviam estacionados em um terreno baldio, em frente ao local. Seu destino parecia selado. Os dois carros dirigiram-se a um local deserto, chamado Manatiales, por uma estrada de terra que desembocava na lagoa Salada Grande. Prellezo, líder do grupo, algemou-o com algemas Alcatraz. Tinha um revólver calibre 32 com ponto de mira vermelho que havia sido apreendido por policiais de Valeria del Mar de ladrões baratos do local. Obrigaram Cabezas a se ajoelhar e, em execução sumária, dispararam duas vezes em sua nuca. Morte instantânea por destruição de massa encefálica. Colocaram-no novamente no carro. Encharcaram-no de gasolina. Atearam fogo ao automóvel. A arma nunca foi encontrada. "Um verão tranqüilo" Um mês e dois dias antes do crime, Prellezo tomou nota de uma advertência de Yabrán: "Quero passar um verão tranqüilo, sem fotógrafos nem jornalistas". Era 23 de dezembro de 1996. A reunião privada, nos escritórios de Yabito S. A. (de propriedade de Alpha, como o chamavam seus guarda-costas), em Buenos Aires, durou no máximo cinco minutos. Cinco minutos nos quais ele deixou claro o pavor que sentia pela exposição pública. Uma foto era, para ele, semelhante a um tiro no rosto, costumava dizer. Seu medo era tanto diante dos 443 (código usado por seus guarda-costas para identificar os profissionais de imprensa), que ele enviou uma jarra de presente a um líder sindical com um cartão bastante sugestivo: "Feliz Aniversário – conforme consta da página 17.162, item 85, do processo. Se não servir de adorno, use-o para quebrar a cabeça de algum fotógrafo indiscreto". O assassinato de um fotógrafo indiscreto -- símbolo da liberdade de expressão – levou à condenação de Gregorio Ríos, chefe dos guarda-costas de Yabrán; Horacio Braga e Gustavo González (co-autores); Héctor Retana e José Auge (principais partícipes); Prellezo; Aníbal Luna e Sergio Camaratta. Os três últimos qualificam-se para liberdade condicional apenas depois de cumprir 25 anos de sua sentença. Os outros podem ser postos em liberdade depois de 16 anos. A mulher de Prellezo, Silvia Belawasky, também ex-policial, foi absolvida depois de ter ficado três anos na prisão por fraude contra uma companhia de seguros – ela e o marido afirmaram que o carro usado no assassinato havia sido roubado. Os policiais Oscar Viglianco e Carlos Minisarco serão interrogados por supostas irregularidades no caso. O tribunal declarou que não havia motivo para que Ríos e Prellezo matassem Cabezas. Salvo o aborrecimento que poderia causar a Yabrán a possibilidade de ser fotografado novamente, ou, talvez, a foto que havia sido publicada 11 meses antes. Braga, Retana, Auge e González, cobraram 4.000 pesos (4.000 dólares) para fazer o trabalho sujo. Luna encarregou-se dos preparativos. Restam, entretanto, alguns fios soltos. Gabriel Michi, colega de Cabezas, não entende por que foi considerada zona liberada o local onde o crime ocorreu. Acha que existe mais alguém envolvido. Gladys Cabezas, irmã do fotógrafo, não aceita o argumento de que Yabrán estava aborrecido e de que isso tenha sido o único móvel do crime. O povo não aceita a atitude de Duhalde: disse que havia pago 50.000 dólares por informações e que sabia onde estava a arma cujo paradeiro ainda é uma incógnita. O sistema Excalibur, de rastreamento telefônico, revelou que Yabrán mantinha contato com figuras do alto escalão do governo, tais como o senador Eduardo Menem, irmão do ex-presidente; Elías Jassan, ministro da Justiça; Carlos Corach, ministro do Interior; e os deputados do Partido Radical, Marcelo Bassani e Raúl Baglini, correligionários do atual presidente, Fernando De la Rúa. "Falava com todo mundo, só faltava falar com o Papa", disse o delegado Víctor Fogelman, responsável pela investigação. Pedido unânime de justiça A marca de Yabrán, investigado até pela agência anti-drogas dos Estados Unidos (DEA), estava presente nos casos de corrupção mais famosos do governo de Menem, tal como o contrabando de armas, a máfia do ouro, e um contrato espúrio entre o Banco Nación e a IBM. O caso Cabezas, aparentemente, não prometia ser mais do que a morte de um carteiro (apelido que Yabrán havia adquirido por suas origens humildes e seus interesses nos serviços postais). Mas, como a bomba na qual terminou se transformando, o assassinato levantou a muralha definitiva no jornalismo entre Menem e Duhalde. E, por sua vez, uniu o povo em um pedido unânime de justiça. Um bem escasso, sem dúvida. Em uma sociedade que, segundo a maioria das pesquisas, pensa que seus políticos privilegiam seus próprios interesses (que muitos só fazem roubar), impôs-se como nunca o compromisso público. Foi capaz de deitar por terra, por exemplo, a tese inicial que atribuía a autoria do crime ao bando Los Pepitos -- nome tragicômico que surgiu da prisão de Margarita Di Tullia, conhecida como Pepita, chefe dos cabarés em Mar del Plata. Foi uma reação em cadeia, espontânea, talvez um escudo, uma forma de não se continuar varrendo o lixo para baixo do tapete. De não continuar olhando pelo olho mágico da porta, pensando que a vítima deve ter feito algo para merecer tal castigo. De parar com a anistia, o pacto, o indulto ou a moratória que tudo lava, enxágua ou centrifuga. Comparável ao caso de Cabezas, caso emblemático que ultrapassa fronteiras, só a morte do soldado Omar Carrasco -- princípio do fim do serviço militar obrigatório depois de colocar em maus lençóis o chefe do Exército na era Menem, general Martín Balza -- e a morte de María Soledad Morales, adolescente de Catamarca cujo trágico fim derrocou a família Saadi, uma dinastia provincial com raízes peronistas. Cabezas foi apenas mais um desconhecido até que, depois de sua morte, seu sobrenome tornou-se parte do dia a dia: não se esqueçam dele. Tampouco se esqueçam dos que terminaram como ele. Nem se esqueçam dos que podem terminar como ele. Calar alguém significa calar a todos. Com a covardia e o medo de tempos e de verbos que pareciam no passado em um país que ainda não se livrou do pesadelo dos atentados aos judeus dos quais (ah, que coincidência!) também participaram policiais de Buenos Aires O crime em si, espantoso, despertou a consciência adormecida dos argentinos. Ou silenciada durante décadas de ameaças, de crueldade e de mortes absurdas. De violência brutal. O povo agora repete: "Não se esqueçam de Cabezas, mas, por favor, tampouco se esqueçam de Yabrán".

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