30 Outubro 2012
Um crime com muitos suspeitos, nenhum preso
O dia ainda estava claro quando o apresentador José Carlos Mesquita foi surpreendido por três homens, ao sair da Televisão Ouro Verde, em 10 de março de 1998. A cidade de Ouro Preto do Oeste, a 333 quilômetros ao sul de Porto Velho, capital da Rondônia, vivia um verão escaldante. O calor não impediu que os matadores do apresentador ficassem sentados na calçada próxima à emissora, esperando durante pelo menos três horas antes do crime, nem que fossem vistos pelos vizinhos, caminhando de um lado a outro da rua. Uma das testemunhas, ao chegar a sua casa, pouco antes das 19h, ouviu um deles gritar para Mesquita: "É um assalto". O jornalista respondeu que não tinha dinheiro, ao que o outro teria retrucado: "Não queremos dinheiro, viemos aqui para matá-lo".
Foram dois tiros na cabeça. O corpo de Mesquita tombou ao lado de sua moto. A pasta que carregava caiu no chão e ele morreu sem ter tempo de ser socorrido. Apesar da rapidez e da eficiência inicial para investigar o caso, o inquérito sobre o crime de Mesquita acabou praticamente sendo esquecido numa gaveta até novembro de 2000, quando a Sociedade Interamericana de Imprensa procurou a Secretaria de Segurança, Defesa e Cidadania de Rondônia para verificar por que as investigações ainda não haviam sido concluídas.
O delegado Adão Caetano Gonçalves, diretor da Delegacia de Polícia do Interior (Depin) do Estado de Rondônia, informou que o delegado regional encarregado do caso, Wagner Januário, da cidade de Ji-Paraná, estava aguardando a liberação de diárias para que os policiais se deslocassem até outro Estado em busca dos foragidos. Sem a prisão destas pessoas, observou, é impossível prosseguir nas investigações, porque não há outras pistas sobre os matadores. Através dos foragidos, acredita poder chegar aos mandantes. Até 18 de dezembro de 2000, os suspeitos não haviam sido presos.
A prisão dos fugitivos Eurico Rodrigues Chaves e de um tal de Nivaldo (não identificado, conhecido também por "Polaco") está sendo aguardada, na verdade, há muito mais tempo. Em dezembro de 1998 foi expedida a primeira ordem. A alegação para a demora é sempre a mesma: faltam verbas e estrutura para os investigadores prosseguirem no caso.
Devido à repercussão do programa que Mesquita apresentava, e à pressão dos familiares e de amigos influentes, a polícia inicialmente colocou como prioridade encontrar os culpados, e atuou rápido nos primeiros meses após o assassinato. Em dezembro de 1998, o Ministério Público ofereceu denúncia contra cinco suspeitos. Três foram presos: Gerim Ferreira Lacerda, Valdivino Martins da Silva e Claudiomiro Chaves. Dois fugiram: Eurico e Nivaldo.
O Ministério Público chegou a eles devido ao depoimento, em março de 1998, de Maria Fagundes de Aguiar, então mulher de Gerim, que estava foragido. Gerim foi preso em setembro de 1998, em flagrante, por porte ilegal de arma. Já tinha um mandado de prisão por tentativa de homicídio em Mirante da Serra, cidade com cerca de 13 mil habitantes, a 57 quilômetros de Ouro Preto do Oeste.
Quando foi preso, Gerim confirmou o que sua mulher havia dito. Afirmou ter hospedado Eurico e Nivaldo em sua casa, a pedido de Claudiomiro (primo de Eurico) e de Marco Antônio Moura, conhecido como Dete (morto em agosto de 1998, em Ouro Preto do Oeste, por overdose de drogas). Relatou que, no dia do assassinato do apresentador, saiu com a mulher para trabalhar num sítio e só retornou no final da tarde. Eurico e Nivaldo não estavam em casa. Voltaram no outro dia, dizendo que tinham ido "fazer uma parada". Pediram a Gerim que chamasse um táxi, previamente contatado por outro suspeito, Valdivino. Segundo Gerim, Eurico disse que ele e Nivaldo eram os matadores do jornalista, mas, se os fatos viessem à tona, iriam matá-lo. Saíram de Ouro Preto do Oeste e não foram mais encontrados.
Valdivino, apelidado de Grande, tem passagem na polícia por tráfico e receptação de drogas. Chamado a depor, negou sua participação no crime. Há boatos em Ouro Preto do Oeste e no município vizinho de Ji-Paraná que Valdivino havia sido preso alguns dias antes da morte de Mesquita, talvez por alguma denúncia apresentada pelo jornalista, e por isso teria se vingado com o assassinato.
O promotor de Justiça que acompanhou as investigações no início do inquérito, Heverton Alves de Aguiar, não conseguiu confirmar essa versão, embora não descarte a possibilidade de participação de Valdivino. "Ele era mais um "boqueiro" (dono de um ponto de venda de drogas) do que um traficante", observa Aguiar. Sua dúvida se deve ao fato de Valdivino não aparentar ter poder econômico para cobrir o custo de um crime de pistolagem. Além disso, Aguiar não achou registros da prisão de Valdivino antes da morte de Mesquita.
Segundo o promotor, o crime foi cometido por matadores de fora do Estado. Por suas características, parece ter sido uma ação de pistoleiros profissionais, de aluguel. Talvez os assassinos não tivessem sido trazidos para a cidade só para matar Mesquita. Eles poderiam estar apenas de passagem por Rondônia e teriam aproveitado a oportunidade para ganhar algum dinheiro. A declaração de Claudiomiro à polícia reforça essa possibilidade. Ele informou que o primo Eurico e seu companheiro Nivaldo haviam se deslocado do Paraná até Rondônia em busca de drogas.
A outra hipótese é de que os suspeitos tenham sido contratados no Paraná especialmente para assassinar o jornalista em Rondônia. Neste caso, o mandante deve ser alguém de posses para assumir os custos da empreitada, que nem sempre é barata. Por isso, a família de Mesquita suspeita de que haveria alguém mais "poderoso" por trás de Valdivino, que teria encomendado o assassinato.
Procurados pela repórter da SIP, em novembro de 2000, nem Valdivino, nem Claudiomiro foram encontrados. Na rua onde mora Valdivino, os moradores parecem ter medo até de falar seu nome.
Dos suspeitos presos, o único que admitiu ter participado do crime, ao hospedar os matadores, foi Gerim. Ele reconheceu também ter recebido uma arma de Eurico como pagamento pela estadia. O revólver foi utilizado na tentativa de homicídio de Gerim contra Lourdes Ferreira de Oliveira, em Mirante da Serra, em 1998.
Apesar do depoimento de Gerim, vários problemas prejudicaram o andamento do inquérito. Um deles é que o auto de exumação do cadáver de Mesquita só foi realizado um ano depois de sua morte. Como em abril de 1999 ainda não havia sido feita a perícia na arma apreendida com os suspeitos, para comparação com as balas retiradas do corpo do jornalista, o promotor de Justiça da Coordenadoria do Ministério Público de Ouro Preto do Oeste, Renato Griego Puppio, 27 anos, cinco de profissão, pediu a liberdade provisória dos réus, alegando que eles não poderiam arcar com o ônus da ineficiência do Estado. Somente em 8 de abril (mais de um ano depois da morte) os peritos encarregados do laudo de balística realizado em Rio Branco, no Acre, concluíram que os projéteis que mataram Mesquita não foram expelidos pela arma que estava com os suspeitos.
Colocado em liberdade junto com os demais suspeitos, Gerim compareceu ao cartório de Ouro Preto do Oeste em 13 de abril do mesmo ano, avisando que ia morar em Mirante da Serra. Seis dias depois, foi assassinado naquela cidade. Os acusados de sua morte são o irmão e o marido de Lourdes Ferreira de Oliveira - aquela que Gerim havia tentado matar antes de ser preso.
Em maio de 1999, o promotor Puppio decidiu pela impronúncia de Claudiomiro e de Valdivino, por considerar as provas contra eles muito fracas. "O que se tinha no inquérito acusando a participação deles era apenas a fala de Gerim, e ele estava morto", justifica. Além disso, segundo o promotor, não havia nenhuma testemunha visual que identificasse os matadores, porque todas as pessoas descreveram apenas ter visto homens correndo, com um boné que lhes tapava o rosto. Se o Ministério Público fosse a júri sem prova nenhuma, a chance de absolvição seria grande e eles nunca mais poderiam ser processados pelo crime, explica. Com a impronúncia, é possível acusá-los novamente, caso surjam novas provas. O inquérito sobre Nivaldo e Eurico foi desdobrado e a ordem de prisão persiste.
Mas o promotor lembra que as dificuldades devem continuar. "No Brasil inteiro a prova pericial não funciona. A polícia está mal aparelhada", acusa. Grieco considera que a polícia falhou por não ter conseguido prender Eurico e Nivaldo, atualmente foragidos. Esta prisão é, a seu ver, a chave que falta para chegar aos mandantes. O promotor Rodrigo José Dantas Lima, que fez a denúncia inicial contra os suspeitos quando recebeu o inquérito, concorda com o colega. "A grande deficiência foi a falta de estrutura da polícia para o trabalho: condições materiais, humanas", diz Lima. "Foi necessário fazer diligências em outro Estado e levaram muito tempo à espera de diárias e de veículos - quando chegaram ao local, não acharam ninguém".
A família de Mesquita e muitos de seus amigos acreditam que não são somente os empecilhos materiais que impedem de chegar a uma conclusão. "Se fosse um crime passional, já teriam resolvido, porque chegaram muito rapidamente aos suspeitos e o governador da época pediu prioridade para as investigações", acredita Aurita Raquel Mesquita Libanio, irmã do jornalista.
O nome do deputado estadual de Rondônia pelo Partido Liberal (PL), Ronilton Rodrigues Reis, o Ronilton Capixaba, ex-policial civil, foi mencionado como um dos suspeitos de ser o mandante do crime nos primeiros dias das investigações, quando foi preso Sebastião Leopoldino da Silva, mais conhecido como Tiãozinho, um morador de Ji-Paraná, segunda cidade mais populosa de Rondônia, com algo em torno de 100 mil habitantes, a 41 quilômetros de Ouro Preto do Oeste.
No primeiro interrogatório feito na polícia, Tiãozinho declarou ter sido procurado por seu sobrinho Jaci, que o teria informado sobre um "serviço" encomendado pelo então vereador Ronilton Capixaba para assassinar Mesquita. Receberia em troca R$ 10 mil. Num segundo depoimento, desta vez em companhia de seu advogado, negou tudo. Disse que havia sido pressionado pela polícia e que nem ele, nem Jaci tinham qualquer envolvimento com o crime. Afirmou não ter nenhuma relação de amizade com Ronilton. O pedido de sua prisão temporária foi revogado pelo juiz.
Ronilton Capixaba diz que só foi conhecer Tiãozinho na prisão, depois de ter sido acusado por ele. Nega qualquer participação no assassinato e lembra que, logo após Tiãozinho, foram detidos os verdadeiros assassinos. O deputado admite ter oferecido apoio financeiro para a polícia ir atrás dos culpados. E diz que conheceu Valdivino, o Grande, porque ele trabalhava como guarda da Câmara Municipal pouco antes de Capixaba assumir como vereador. Além disso, Capixaba foi agente da Polícia Civil. Ele acredita que seu nome foi envolvido nas investigações porque era um ano eleitoral, e havia interesse de prejudicá-lo politicamente.
O delegado Márcio Mendes Moraes atuava em Ouro Preto do Oeste quando Mesquita foi morto, e hoje está na delegacia regional de Rolim de Moura, também em Rondônia. Moraes acredita que Tiãozinho foi pressionado para confessar sua participação no crime, porque tinha fama de pistoleiro e havia matado uma pessoa no Espírito Santo. O delegado lembra que o carro e a arma apreendidos com o suspeito não conferiam com a descrição das testemunhas.
Durante as investigações ocorreu um impasse: foi pedida a quebra do sigilo telefônico de Ronilton Capixaba. "Não havia nenhum telefonema que o ligasse ao crime", garante Moraes, lembrando dos resultados da busca. A verdade é que, embora o rastreamento das ligações telefônicas tivesse sido feito com a recomendação de sigilo absoluto pelo promotor de Justiça Heverton Alves de Aguiar, a notícia vazou. "Alguns dias depois, o próprio Ronilton Capixaba foi à delegacia perguntar ao delegado Moraes o que estava acontecendo", lembra Aguiar. "Eu pedi providências: a informação só pode ter saído da própria polícia", analisa o promotor. E conclui: se é que havia algo ligado ao político, a partir do momento em que a informação se espalhou seria muito difícil conseguir alguma prova contra ele.
Dois anos depois de seu primeiro depoimento, procurado pela SIP, Tiãozinho não foi encontrado no endereço em que morava, em Ji-Paraná. Os vizinhos dizem que ele se mudou logo em seguida dos depoimentos à polícia. Seu sobrinho, Jaci, observou que, após o ocorrido, o tio ainda tentou montar um açougue. Segundo Jaci, o deputado Ronilton Capixaba sempre se deu com todo mundo.
O delegado Moraes pediu para afastar-se do cargo porque vazaram informações sobre as investigações a respeito da busca dos foragidos, que foram publicadas no jornal local. "Não sei se quem prejudicou as investigações foi a Polícia Civil, o Fórum, ou o pessoal da Homicídios", reclama Moraes. O caso passou para Pedro Mancebo, na época delegado regional de Ji-Paraná, hoje titular da Delegacia Especializada de Armas em Porto Velho e vice-presidente do Sindicato de Delegados do Estado.
"Eu apontei os autores, cabe ao Ministério Público denunciar ou não. Se não há provas suficientes, não é por falha do inquérito", acredita Mancebo. "Só não fizemos mais por falta de meios", alega. Na visão do promotor Aguiar, o que faltou mesmo foi determinação policial para investigar. "Num crime dessa natureza, contra o único repórter que levava informações para o público, a polícia devia ter maior comprometimento."
Família mudou-se para outro país
A família de Mesquita não quis esperar pelo fim das investigações. Depois da morte do jornalista, os filhos ficaram com medo e numa situação econômica difícil. Eles não conseguiram manter o canal de televisão. Saldaram as dívidas e mantiveram apenas uma máquina fotocopiadora, de onde vem o sustento do filho Rony. Zilda, a viúva, e os outros filhos Wesley e Clérisson deixaram o país.
Mesquita deixou ainda uma outra pessoa inconsolável: sua companheira nos últimos tempos, Neidimar Oliveira Clara, cujo irmão era concunhado de Ronilton Capixaba. Neidimar trabalhava como gerente-administrativo do Hospital Santa Cruz (de propriedade de Capixaba). Pouco antes de Mesquita ser morto, ela foi para a Bolívia, cursar a faculdade de Medicina, com a ajuda do jornalista. Esperava, na volta, retomar o relacionamento com ele, que já durava três anos. Depois do assassinato de Mesquita, entretanto, não voltou mais a Rondônia. Muitos na cidade suspeitam que Neidimar soubesse de alguma prova que pudesse incriminar alguém como mandante do crime. Contatada pela SIP, Neidimar sustenta que, se soubesse de algo, contaria, porque gostava muito de Mesquita e não teria interesse nenhum em sua morte, uma vez que dependia dele para sobreviver na Bolívia.
O apresentador do Espaço Aberto é descrito pelos amigos como uma pessoa alegre, que gostava de ajudar os outros. Dedicou-se muito aos idosos de Ouro Preto do Oeste, e até conseguiu uma casa para abrigá-los. O local onde morava, assim como a sede da TV Ouro Verde, eram prédios de madeira, muito simples, sem ostentação. Muitas vezes passou por dificuldades financeiras. Uma vez, teve de fechar a televisão por quatro ou cinco meses, porque faltava um registro para seu funcionamento em Brasília. Ele próprio ia atrás de publicidade para manter a tevê. Seu orçamento dependia também do dinheiro da propaganda oficial do governo.
Membro da Igreja Adventista, Mesquita parecia, segundo a irmã Aurita, estar se voltando mais para a religião. E fazia muitos planos para o futuro. Um deles era montar uma televisão também em Rio Branco, capital do estado vizinho do Acre. No dia de sua morte, ele se preparava para ir a Rio Branco filmar um jogo de futebol. "Mesquita se dava bem com todo mundo, achava que não tinha inimigos", conta a viúva, Zilda.
A causa da morte ainda é um mistério
Na pequena cidade de ruas com asfalto corroído pelo tempo, entremeadas pelo tom rosado das estradas de terra vermelha, o programa Espaço Aberto, apresentado aos domingos por José Carlos Mesquita, tinha um público certo: os desvalidos. Prefeitos, delegados e vereadores eram freqüentemente chamados à Televisão Ouro Verde, de propriedade de Mesquita, em Ouro Preto do Oeste, para falar sobre os projetos para o município. Se havia um buraco na rua, os moradores apelavam para Mesquita. Ele cobrava uma solução, e lá se ia o político prometer a cura para o problema.
Por isso, muita gente se surpreendeu quando soube que o apresentador havia sido morto em frente à casa simples de madeira pintada de azul, no alto da Rua Tiradentes, onde funcionava o canal 3 de televisão. Cidade com cerca de 50 mil habitantes, que vive basicamente da bacia leiteira e do cultivo do arroz, café, feijão e cacau, em Ouro Preto do Oeste praticamente todo mundo se conhece de vista ou por conversas de rua. Segundo os amigos e colegas, Mesquita não era de fazer grandes denúncias, ou de atacar alguém sem consultar o ofendido para que se defendesse na frente da câmera. "Ele era muito respeitador. Fui muitas vezes ao programa", diz o delegado regional Márcio Mendes Moraes, que atuava em Ouro Preto do Oeste.
Duas hipóteses para sua morte surgiram inicialmente. Uma delas foi a briga com outro jornalista, Antônio Alexandre Araújo, o Paraíba, ocorrida em novembro de 1997. Mesquita se desentendeu com Araújo porque este havia pegado uma fita com imagens de uma partida de futebol sem sua permissão, na Televisão Ouro Verde. Depois desse episódio, circulou pela cidade a notícia de Mesquita estaria falando para todos que Araújo era ladrão de gado. Um advogado intermediou as ofensas entre os dois, acalmando os ânimos.
A outra possibilidade cogitada de início foi o fato de Mesquita ter assumido a campanha, em seu programa de tevê, para a implantação do serviço de mototáxi em Ouro Preto do Oeste. Os motoristas de táxi, incomodados pela concorrência que viriam a ter, protestaram. Mesquita registrou queixa na delegacia da cidade, em novembro de 1997, pelo recebimento de uma ameaça por parte do taxista Gidevaldo Elias de Gois para que parasse de falar nos mototáxis em seu programa. Gois negou o tom de ameaça.
Descartada essa linha de investigação, os policiais se voltaram então para outras vertentes. Comentou-se muito, depois do assassinato do jornalista, que ele vez ou outra falava informalmente, fora da tela, sobre sua insatisfação com as irregularidades nos hospitais, incluindo o Hospital Santa Cruz, instituição particular de propriedade, entre outros, do vereador Ronilton Capixaba. Mesquita reclamava que, enquanto a população sofria com o precário atendimento de saúde, havia gente poderosa lucrando com o dinheiro das Autorizações de Internação Hospitalares (recursos pagos pelo Governo Federal por todos os procedimentos realizados na internação de um paciente pelo Sistema Único de Saúde) e com a compra de medicamentos. Mesquita também teria denunciado, pouco tempo antes de morrer, o tráfico de drogas na região.
Ronilton Capixaba, hoje deputado estadual pelo Partido Liberal (PL), ainda é proprietário do Hospital Santa Cruz. Nega que houvesse qualquer irregularidade no estabelecimento. "O hospital foi investigado e o Ministério da Saúde não encontrou nada contra", defende. "Nunca tive problemas com Mesquita, ele era um amigo, e sua mulher era administradora do meu hospital", ressalta.
No final de semana que antecedeu à sua morte, o jornalista ligou para Heverton Alves de Aguiar, promotor de Justiça de Ouro Preto do Oeste. "Parecia tenso, apreensivo", conta Aguiar. Mesquita disse ao promotor que precisava lhe entregar uma fita de vídeo, algo de que ele ia gostar muito. Não quis adiantar do que se tratava, porque tinha medo que seu telefone estivesse com escuta. Aguiar convidou-o a ir até sua casa naquele mesmo dia, mas Mesquita preferiu esperar até segunda-feira pela manhã.
No dia combinado, no entanto, Mesquita não apareceu na promotoria. Aguiar o procurou, inclusive deixou recado na televisão, onde o jornalista estava gravando o programa, e não obteve resposta. Mais tarde, quando ia para casa, o promotor viu a movimentação em frente à funerária e soube do assassinato. "Tão logo soube, pedi que encontrassem a fita de vídeo", observa. Assistiu a muitas delas que foram encontradas na sede da televisão, sem identificar nenhuma denúncia especial. Testemunhas dizem que, quando Mesquita foi morto, ao sair da televisão, levava uma pasta. Ninguém sabe se nela estava a tal fita. De qualquer forma, o material desapareceu.
Na época, Aguiar investigava desde denúncias de corrupção, incluindo as irregularidades do convênio entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e os hospitais locais, bem como a poluição causada por grandes indústrias nos rios da região. O conteúdo da fita poderia estar ligado a alguma destas investigações.
Logo depois do assassinato do jornalista, o promotor foi promovido, mudou-se para a Capital e deixou o caso. Disse que, antes de ir embora, fez um relatório para a Procuradoria Geral de Justiça, acusando o descaso da polícia em relação à morte de Mesquita e apontando falhas na investigação. Observou que, durante um período, ficaram duas equipes trabalhando ao mesmo tempo. "Parece que as duas não se afinaram". Aguiar reclamou também do vazamento de informações dentro da polícia e para a imprensa.
Valdir Raupp de Matos, governador de Rondônia entre 1995 e 1998, hoje trabalhando com pecuária e estudando Administração em Brasília, disse que mandou várias vezes a Secretaria de Segurança apurar o crime ocorrido no final de seu governo. Ele acredita que a causa pode ter sido política no assassinato de Mesquita. No entanto, admite: "Faltaram testemunhas e provas."
Falhas nas Investigações
Especialistas, familiares e colegas de José Carlos Mesquita apontam os principais problemas que acreditam possa ter impedido a polícia de encontrar os culpados pela morte do apresentador de televisão:
1) Durante um período, equipes de polícia de Ouro Preto do Oeste e de Ji-Paraná participaram ao mesmo tempo das investigações, mas não parecia haver um consenso entre elas
2) Quando Heverton Alves de Aguiar, na época promotor de Ouro Preto do Oeste, pediu, com segredo de justiça, que fosse feito o rastreamento telefônico, e o delegado Márcio Moraes mandou uma equipe buscar os foragidos em outro Estado, as informações vazaram para a imprensa
3) Não foi encontrada a fita de vídeo com denúncias que José Carlos Mesquita disse que iria entregar para o promotor Heverton Alves de Aguiar dias antes de sua morte
4) O exame de balística demorou a ser realizado
5) Quando os policiais foram atrás dos suspeitos indicados por Gerim Ferreira Lacerda, que estariam em outro Estado, foi enviado um comunicado para a delegacia do local. Ao chegarem ao lugar indicado, os suspeitos já haviam fugido. Os próprios delegados dizem que houve vazamento de informação, o que teria facilitado a fuga
6) Gerim Ferreira Lacerda, a principal testemunha do inqúerito, não recebeu a devida proteção da polícia. Foi o único que confirmou ter ouvido dos supostos matadores a confissão de que teriam assassinado José Carlos Mesquita. Ele foi morto logo após ser liberado da prisão preventiva. A polícia sabia de seu envolvimento em outros crimes e de sua importância para garantir o prosseguimento das investigações
7) O inquérito estava parado, aguardando, segundo a polícia, a liberação de verbas para ir atrás dos suspeitos que teriam fugido para outro Estado. Somente depois que a SIP entrou em contato com o secretário de Segurança, Defesa e Cidadania, Reinaldo Silva Simião, em Porto Velho, capital de Rondônia, é que houve a promessa de que seria feito um novo pedido de liberação de verbas para prosseguir com as buscas. Em 18 de dezembro de 2000, Edson Simões, diretor-executivo da Polícia Civil em Rondônia, informou que a autorização para liberar o dinheiro havia sido dada na semana anterior.
Impunidade faz Rondônia concorrer ao título de "terra sem lei"
Rondônia tem fama de ser uma "terra sem lei". O comportamento de ex-deputados da região ajudou a construir essa imagem. Ficaram conhecidos os casos de Jabes Rabelo (cassado por entregar uma carteira de assessor da Câmara Federal ao irmão, Abdiel, traficante de cocaína, que a usava para circular na fronteira), Nobel de Moura (cassado por falta de decoro parlamentar, acusado de atrair outros políticos para seu partido oferecendo muito dinheiro) e Raquel Cândido (presa por desviar US$ 800 mil para uma entidade assistencial fantasma, acusada também de envolvimento com narcotráfico, sem comprovação).
Não bastassem os crimes políticos, em agosto de 1995, 11 pessoas morreram e 125 ficaram feridas num confronto entre policiais e trabalhadores sem terra em Corumbiara, a 800 quilômetros de Porto Velho. Os policiais obedeciam a uma ordem de despejo das 500 famíias que haviam ocupado uma fazenda. O "Massacre de Corumbiara", como ficou conhecido, chamou a atenção da Anistia Internacional. A entidade divulgou um comunicado criticando o sistema judicial brasileiro pela absolvição de três policiais militares acusados de envolvimento nas mortes.
Em dezembro de 1999, foram os traficantes de Rondônia que deram uma prova de sua força ao assassinarem brutalmente um agente da Polícia Federal encarregado da investigação de uma quadrilha em Vilhena, a 710 quilômetros da Capital. Além disso, há centenas de mortes de garimpeiros não esclarecidas.
Nesse contexto, a impunidade não é privilégio apenas dos matadores de jornalista José Carlos Mesquita, em Ouro Preto do Oeste. Na mesma cidade, políticos já haviam sido mortos sem que seus crimes fossem elucidados.
A impunidade virou sinônimo ainda de outro crime: o do senador Olavo Pires, morto em 16 de outubro de 1990, em Porto Velho. O político foi metralhado com 13 tiros quando saía da revenda de máquinas e equipamentos agrícolas Vepesa, de sua propriedade. Olavo Pires disputava, na época, o segundo turno das eleições para o governo do Estado. Com o assassinato de Pires, o terceiro colocado no primeiro turno, Oswaldo Piana, assumiu como governador.
A morte por encomenda do senador fez o Estado de Rondônia ser citado na Comissão Parlamentar do Inquérito (CPI) da Pistolagem realizada na Câmara dos Deputados em 1994. Conforme a CPI, Olavo Pires defendia posições contrárias a grupos econômicos influentes. Ao mesmo tempo, ele era acusado de envolvimento com narcotráfico, de fraudes e até da morte de um jornalista, João Alencar, em 1983, sem que fossem comprovadas as denúncias. Os integrantes da CPI concluíram que as insinuações sobre os vínculos com o narcotráfico, assim como as demais, eram apenas para despistar. E denunciaram os possíveis mandantes, que teriam sido contrariados em seus interesses políticos e econômicos. Em 1999 houve nova tentativa de dar andamento ao inquérito. Até hoje, no entanto, o caso continua impune. Emerson Olavo Pires, filho do senador, salienta que três testemunhas foram mortas.
Desbravado pelo marechal Cândido Mariano Rondon no início do século passado, o território conhecido hoje como Estado de Rondônia já foi apelidado um dia de "Eldorado do Norte". Com uma área de 238.512 quilômetros quadrados, dois terços deles cobertos pela Floresta Amazônica, abriga atualmente cerca de 1,2 milhões de habitantes. A maior parte deles veio do Sul e do Sudeste do país, atraídos pela propaganda feita pelo governo quando Rondônia ganhou autonomia política e virou Estado, em 1982.
Milhares de agricultores, empresários e até foragidos da Justiça juntaram-se então nas terras que antes pertenciam aos índios. Apesar de ter a economia baseada na agropecuária, na madeira e no que restou de garimpo, Rondônia tornou-se popular, no entanto, pela má fama de seus políticos e pela participação na rota do narcotráfico. A proximidade com a fronteira da Bolívia e a dificuldade de fiscalização dos 1,7 mil quilômetros fluviais transformou o Estado num dos principais portões de passagem de cocaína no Brasil. As estradas são ruins, e algumas ficam intransitáveis em período de chuva, prejudicando ainda mais o controle da polícia.
O atual Secretário de Segurança, Defesa e Cidadania de Rondônia, o coronel aviador da ativa Reinaldo Silva Simião, assumiu o cargo em março de 2000 prometendo reverter a imagem de criminalidade e impunidade do Estado. "Existem deficiências próprias da polícia, acumuladas ao longo dos anos por não ter havido investimentos necessários nessa área", confirma Simião. O resultado são delegacias sem infra-estrutura básica, seja de armamento, combustível, móveis, muito menos informatização. "O trabalho da polícia é feito por esforço dos policiais em superar estas realidades, buscando alternativas com empresários da região, por exemplo, para compra de combustível", diz o secretário. Ele acredita na possibilidade de mudança desse quadro a partir da integração das polícias num Centro Integrado de Operações. Informa que estão sendo feitos investimentos do Estado e do Governo Federal na compra de viaturas, computadores, equipamento para perícia, além da realização de cursos para reciclagem e treinamento de pessoal.
Simião espera fazer uma revolução no Estado com a instalação dos Conselhos Comunitários de Segurança. Mas ressalta que o Programa de Proteção de Testemunhas do Governo Federal ainda não foi implantado em Rondônia. Está buscando parcerias com organizações não-governamentais com o objetivo de implantar um esquema semelhante. Salienta que, apesar da má fama, Rondônia é um Estado com plano socioeconômico ecológico aprovado e um planejamento agrário.
Conexão Rondônia-Espírito Santo
Existe uma conexão entre os estados de Rondônia e Espírito Santo, como foi constatado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o Narcotráfico, cujos resultados foram apresentados em dezembro de 2000. A chamada Conexão Sudeste das drogas teria começado, de acordo com o relatório da CPI, por volta de 1979. Nessa época, uma grande enchente em Espírito Santo fez com que muitas famílias daquele Estado migrassem para Rondônia em busca de terras férteis.
Sem estrutura de trabalho, endividadas, algumas pessoas recorreram ao comércio de cocaína em pequena escala para sobreviver, aproveitando a proximidade com a Bolívia. Com o tempo, passaram a ser procuradas por pequenos traficantes, principalmente do Espírito Santo e de Minas Gerais. Conforme constatou a Polícia Federal, traficantes viajavam de ônibus, em linhas regulares ou clandestinas, para buscar a droga.
Com o aumento da fiscalização, as encomendas passaram a ser enviadas também por correio, em carros de passeio, ou em aeronaves particulares e em caminhões. Ainda segundo a CPI, vem de Ji-Paraná, em Rondônia, grande parte da cocaína que abastece o mercado do Espírito Santo. Talvez existam fatos, ainda não investigados, que podem relacionar essa conexão com a morte do jornalista José Carlos Mesquita.
Coincidências
No inquérito que apura a morte de José Carlos Mesquita existem algumas "coincidências" a serem melhor investigadas pela polícia:
1- O apresentador da TV Ouro Verde, José Carlos Mesquita, era natural de Vitória, no Espírito Santo. Também vieram daquele Estado:
* Valdivino Martins da Silva, conhecido como Grande, com passagem na polícia por envolvimento com drogas. Valdivino chegou a ser preso como suspeito de participação na morte de Mesquita. Foi solto por falta de provas
* Deputado estadual Ronilton Rodrigues Reis, ou Ronilton Capixaba, dono do Hospital Santa Cruz, de Ouro Preto do Oeste, e uma das primeiras pessoas apontadas nas investigações como suspeito, hipótese depois descartada pela polícia
* Neidimar Oliveira Clara, que viveu com Mesquita durante três anos, no período anterior a sua morte. Ela trabalhou como administradora no hospital de Ronilton Capixaba
2- José Carlos Mesquita fez denúncias sobre o comércio de drogas e sobre o atendimento de saúde
3- Os suspeitos Nivaldo (não identificado) e Eurico Rodrigues Chaves, que estão foragidos, teriam ido do Paraná a Rondônia para comprar drogas, segundo Claudiomiro Chaves (também suspeito, mas depois solto pela polícia)
4- Gerim Ferreira Lacerda, suspeito também liberado pela polícia por falta de provas, havia confessado que os dois foragidos estiveram hospedados em sua casa e que teriam mencionado serem os matadores de Mesquita. Foi assassinado em Mirante da Serra, dias após ser solto da prisão preventiva. A história da morte de Gerim é confusa e merece uma investigação mais apurada:
* Na época do assassinato de Mesquita, Gerim vivia com Maria Fagundes de Aguiar. Maria foi ouvida pela polícia e confirmou a presença dos suspeitos em sua casa na data da morte do jornalista. Localizada pela SIP, dois anos após o crime, comentou que, em seu depoimento na polícia, acrescentaram informações que não havia dado, como o fato de ela ter lavado a roupa dos suspeitos, que confirmaria a descrição das testemunhas. Disse ainda que a casa onde ela e Gerim estavam, e onde os suspeitos ficaram, era alugada de Zé Margus, que morava nos fundos do terreno
* José Ferreira Siqueira, Zé Margus, é um homem desconfiado, que mede as palavras antes de falar. Conta que achava estranha a forma como Gerim fazia piadas sobre sua arma, um revólver 38. "Chamava de coronha branca e dizia: esse coronha branca sabe ganhar dinheiro", recordou, ao ser encontrado pela SIP morando numa casa de fundos em uma propriedade de Mirante da Serra, em Rondônia. Disse que não conhece Eurico e Nivaldo, ainda que a casa onde os dois se hospedaram fosse sua e tivesse sido alugada por Gerim, segundo contou Maria
* Em Mirante da Serra, antes de ser preso, Gerim ficou um tempo na residência de uma amiga de Zé Margus. Durante esse período, manteve um relacionamento com Nerzi Marques da Silva, com quem teve uma filha. Os dois foram viver juntos e trabalhavam para Lourdes Ferreira de Oliveira, filha de Zé Margus. Incomodado com o fato de Lourdes insinuar que ele não pagava suas contas e que teria roubado algum dinheiro, Gerim tentou matá-la. Quando foi preso em flagrante por porte de arma e tentativa de homicídio, confessou sua suposta participação no crime de Mesquita ao hospedar os possíveis matadores
* Após sair da prisão, Gerim voltou a Mirante da Serra. Muitos temiam que ele fosse tentar matar novamente Lourdes. Testemunhas viram ele ser morto pelo irmão e pelo marido de Lourdes. E quando uma das crianças que estava no local perguntou quem havia matado Gerim, os matadores responderam que não eram vagabundos, estavam a mando "da autoridade"
* No período em que viveu com Nerzi, Gerim disse a ela que não podia voltar a Ouro Preto do Oeste porque lá estava "sujo". Prometeu falar sobre sua vida passada para a mulher quando completassem dois anos juntos