30 Outubro 2012

Quem foi?

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Três anos depois do assassinato de Benjamín Flores, a dúvida persiste Benjamín Flores tinha 29 anos quando foi assassinado. Preparava-se para subir as escadas do edifício do jornal La Prensa quando um homem, após descer de uma caminhonete em movimento, metralhou-o, foi ao carro para pegar uma pistola e voltou para disparar mais três tiros em sua cabeça, fugindo depois com mais três homens. "Quem foi?", perguntaram horas depois centenas de cartazes espalhados por toda a cidade de San Luis Río Colorado, presos nas camisas de seus amigos, ao caixão aberto do jornalista. A pergunta -- "Quem foi?" -- continua sendo feita pelo La Prensa que, desde o assassinato de seu diretor, publica na página dois um lembrete quinzenal para as autoridades.
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Isso porque, três anos depois do crime, ainda não se tem nenhuma resposta para a pergunta. E porque a tese elaborada pelas autoridades para respondê-la não parece convincente. O suposto autor intelectual foi posto em liberdade por falta de provas e a investigação fez muito pouco para provar a participação de quatro homens que continuam presos em Hermosillo, no Estado de Sonora, ao norte do México. "A impunidade que vemos neste caso trabalha contra os jornalistas, principalmente os que lidam com temas como narcotráfico", pondera Miguel Acosta Valverde, coordenador do Programa de Proteção a Jornalistas da Academia Mexicana de Direitos Humanos, que encaminhou a investigação; "é um péssimo sinal". A violência contra jornalistas na fronteira do México com os Estados Unidos acentuou-se nos últimos três anos. "A ameaça é o narcotráfico, e o que o narcótico faz é silenciar e assim a sociedade não pode se defender." Benjamín Flores era persistente. Trabalhou primeiro vendendo cachorro-quente na rua, depois como correspondente, secretário particular de um governador, e, por fim, como dono e diretor do jornal La Prensa, na cidade de San Luis Río Colorado, fronteira com os Estados Unidos. Era um rapaz muito vivo; era jornalista e administrador. Suas matérias expunham sem pudor políticos, policiais e mafiosos. "Sem restrições, como o pensamento", era a frase impressa no cabeçalho do tablóide preto e branco que fundou. Seu trabalho deu-lhe popularidade -- "era um Hobin Hood", disse sua irmã Ofelia -- e fez com que sofresse pressões e fosse alvo de cinco ações por difamação. Seus colegas acreditam que seu trabalho também tenha provocado sua morte. Tinha inimigos devido a tudo de verdadeiro que disse e devido a muitas acusações pouco fundadas que também publicou no tablóide, acreditam alguns colegas. "Você não tem nenhuma culpa na consciência por alguma pequena mentira que lhe tenha escapado?", perguntou-lhe o jornalista Jesús Barraza em uma entrevista realizada em 1995. "Nunca publiquei algo que soubesse ser mentira. Culpa na consciência, sim, talvez, porque posso ter me excedido, ter sido duro, mas depois de tantas sujeiras que esse povo sofre, o mínimo que podemos fazer é nos sentir envergonhados." Sua cidade é uma cidade de fronteira, assolada pelos narcotraficantes, policiais e funcionários do governo ligados à máfia. "Ele tinha muitos inimigos. Talvez tenha havido apenas um responsável pelo crime, mas muita gente queria vê-lo morto", disse Miguel Acosta Valverde, da Academia Mexicana de Direitos Humanos. Policiais, políticos e militares Benjamín Flores publicou, em maio de 1997, o "desaparecimento" de meia tonelada de cocaína confiscada, que estava sob custódia da Polícia Judicial Federal, em San Luis Río Colorado. As manchetes do jornal desmascararam policiais e comandantes aliados a chefes de máfia e insistiram na suposta relação do governador com os traficantes. Quando ocorreu sua morte, os jornalistas voltaram sua atenção para o então governador do Estado de Sonora, Manlio Favio Beltrones. "Quem foi?". No cartaz estava impresso o rosto do mandatário. A polícia voltou sua atenção para Jaime González Gutiérrez, conhecido como El Jaimillo, líder de um bando de irmãos traficantes de drogas e alvo freqüente das matérias de Benjamín Flores. Uma semana depois do crime, o procurador de Justiça de Sonora havia descartado a hipótese de que se tratava de uma vingança de funcionários ou de políticos. Concentrou-se em González Gutiérrez, abandonou os nomes dos primeiros suspeitos e prendeu outros como supostos autores materiais do homicídio. A Procuradoria deu o caso por encerrado ao provar sua hipótese única de que o móvel havia sido uma vingança de narcotraficantes pelas críticas feitas por Flores. "A investigação foi feita apenas com as provas que iam sendo encontradas, como se tivessem sido deixadas propositalmente", disse Ramón Gastélum Gastélum, amigo e advogado de Benjamín Flores. Tudo isso não teria hoje nenhuma importância se a investigação tivesse se mostrado sólida. Entretanto, depois de três anos, o processo se revela repleto de pontos fracos e inconsistências. Um juiz liberou, em 1998, Jaime González Gutiérrez da acusação de ser o suposto autor intelectual do assassinato. Argumentou falta de provas. As testemunhas que identificaram Luis Enrique Rincón Muro como o homem que realizou os disparos retrataram-se e declararam perante a Justiça que foram pressionadas para fazer declarações contra ele. Dois homens estão foragidos e os quatro acusados continuam presos à espera de sua sentença em um processo lento. Os nomes de outros possíveis participantes não foram considerados na investigação. O volume do processo tem 1.800 páginas, segundo informações, e poucas provas que suportem a tese da Procuradoria. "A história pode ser verdadeira, mas foi formada com bases que não a sustentam. O procurador pode tê-la inventado, é uma hipótese que não descarto", disse Humberto Melgoza, chefe de redação do La Prensa. "Não sei o que vão fazer nesse caso; não há prova contra eles, mas não acho que possam ser considerados inocentes, porque seria um escândalo", disse Roberto Silva Calles, que defende os quatro incriminados. Inimigo mortal González Gutiérrez era inimigo mortal de Benjamín Flores. O La Prensa apresentou-o como narcotraficante, expôs suas manobras para ficar livre todas as vezes em que foi preso e revelou os privilégios de que gozou enquanto esteve preso. "Ele é fichinha", disse Melgoza, e o La Prensa ocupou-se em revelar seus crimes e a impunidade que sempre os cercou. Seus irmãos se apresentavam como jornalistas. Publicavam a revista Alternativa, que era distribuída gratuitamente na cidade e que servia como plataforma para atacar seus adversários. González Gutiérrez se apresentava como repórter e seu irmão, Ismael, como membro da "Frente Mexicana Pró Direitos Humanos". González Gutiérrez foi acusado, em 1992, de assassinar o policial municipal Víctor Hugo Arroyo, que o prendeu por excesso de velocidade. El Jaimillo foi exonerado do cargo. Nesse mesmo ano, foi acusado de traficar cocaína e também foi afastado do cargo por um Tribunal. Em fevereiro de 1997, foi preso com uma identidade falsa e 100 kg de maconha. Benjamín Flores identificou-o no dia seguinte no La Prensa e denunciou os privilégios que gozou depois na prisão. Na prisão, González Gutiérrez foi apontado como autor intelectual do assassinato de Benjamín Flores. Segundo as autoridades, encarregou seu irmão, Gabriel, de executar o crime. Mas em janeiro de 1998, foi posto em liberdade por falta de provas e meses depois estava na rua, livre da outra acusação por tráfico de maconha que o havia mantido preso. "Esse homem foi pego com a mão na massa, com um carregamento de maconha, e foi posto em liberdade!", reclama Humberto Melgoza. O La Prensa colocou Jaimillo, juízes e ministérios públicos em sua mira. "Parece que o trabalho de Benjamín Flores criou muita pressão em torno de González Gutiérrez e dificultou sua saída da prisão", comenta o defensor de direitos humanos, Miguel Acosta. A Procuradoria não conseguiu construir um caso contra ele. Há sinais diretos sobre as ordens que deu seu irmão Gabriel, mas as referências sobre a participação de Jaime González Gutiérrez são "indiretas". Uma das provas que a procuradoria possuía era o testemunho de Ramón Gastélum, que um juiz descartou: segundo Gastélum, o advogado de González Gutiérrez teria oferecido dinheiro a Benjamín Flores em troca de que deixasse de publicar matérias sobre o El Jaimillo. Gastélum recusou a oferta e o advogado respondeu com uma ameaça ao jornalista. "Sua declaração é apenas uma suposição (…), uma conjectura que não tem suporte em dados dignos de fé", afirmou o juiz que declarou insustentável o mandado de prisão contra González Gutiérrez por esse crime. "São muitas liberdades para crimes tão óbvios. Por detrás delas há certamente interesses muito fortes", afirma Gastélum. "Ou ele tem muita sorte ou muito poder econômico ou respaldo político, porque tudo tem dado certo para ele." Existe um mandado de prisão contra Gabriel González, que esteve foragido por três anos. Em 24 de fevereiro de 2000, foi preso com três irmãos no Arizona. Os quatro serão julgados nos Estados Unidos por terem distribuído pelo menos uma tonelada de maconha e 245 quilos de cocaína na região de Yuma. Jaime González Gutiérrez foi preso em 26 de abril de 2000 e acusado de assassinar com 37 punhaladas José Manuel Echevarría Varela. "Está louco, é um psicopata. Disse que gostou muito do modo como cortou o pescoço de sua vítima com a faca", disse Humberto Melgoza, do La Prensa. Segundo informaram os jornais no dia seguinte ao de sua prisão, El Jaimillo disse aos policiais municipais que havia ordenado o assassinato de Benjamín Flores. "Essa é uma história de imprensa marrom", desconfia o advogado dos quatro rapazes processados pelo crime, Roberto Silva Calles. "Jaime está louco, mas não é bobo. É uma pessoa muito esperta, como iria dizer ‘sim, fui eu!’? Essa declaração não é válida", assegura. Os policiais não confirmaram essa versão perante as autoridades e González Gutiérrez não a ratificou em sua declaração. "A prisão não prejudica nem beneficia ninguém. No auto do processo não existem provas que o vinculem (ao crime) e consta que não defendo Jaimillo, mas são só conjecturas", disse Silva Calles. O advogado de defesa insiste em dizer que o caso não tem fundamentação. "Estou pedindo que o procurador e os policiais que armaram a investigação se apresentem para testemunhar, que nos digam como armaram o caso, em que bases." O defensor dos quatro homens presos garante que foram torturados para assinar as declarações que os incriminam. Pau que nasce torto Para Humberto Melgoza, não deveriam ser descartadas hipóteses de outros possíveis móveis e autores do assassinato. "Não descarto a hipótese de o governo (do governador) Beltrones estar vinculado. Porque os González tinham vínculos com o governo, com o partido (oficial); Benjamín os atacava tanto quanto a Manlio Flavio ou outros políticos", comenta. Em sua opinião, a maior parte do iceberg continua escondida. Melgoza acredita que pelo menos Luis Enrique Rincón seja inocente. "Não coloco as mãos no fogo pelos outros, mas pelo que investigamos, há testemunhas que estiveram com ele na mesma hora que mataram Benjamín. Acreditamos que El Chichi seja inocente." Luis Enrique Rincón Muro, apelidado "El Chichi", é um jovem de 27 anos que tem um pequeno estabelecimento de lavagem de automóveis perto das instalações do La Prensa. Segundo seu depoimento, em 15 de julho de 1997, estava em uma oficina consertando o sistema de arrefecimento de um automóvel quando chegou um policial e disse-lhe que haviam matado o diretor do La Prensa. O dono da oficina, os funcionários e o policial confirmaram essa versão perante o juiz. Rincón Muro foi preso três dias depois do assassinato e acusado de ser o assassino. Na averiguação, constam as declarações de supostos cúmplices que apontaram o "El Greñas", outros que apontam Carlos Pacheco García, como a pessoa que fez os disparos. Não há mais sinal deles na investigação. "Me colocaram em um carro oficial e me levaram por um canal. Eram quatro, queriam que eu assinasse uns papéis. Começaram a me forçar dentro do carro, ‘assine, assine’, estava escrito à máquina, um monte de folhas que queriam que eu assinasse. Então, comecei a ficar com medo. Tinham meu nome, tudo, que era magro, de cabelos compridos. Era 18 de julho, nunca vou me esquecer disso", conta Rincón Muro, que está preso em Hermosillo. À noite, foi levado às instalações do La Prensa para ver se os jornalistas que presenciaram o assassinato o reconheciam. "Eles disseram ‘parece-se com ele’, mas no auto do processo a procuradoria afirmou que o identificaram sem nenhuma dúvida como a mesma pessoa que disparou contra Benjamín", objeta Melgoza. Os jornalistas do La Prensa colaboraram com a defesa de Rincón Muro; disseram que haviam sido pressionados e que sua declaração foi distorcida. Afirmaram ter visto um homem magro, com nariz pontudo, como Rincón Muro, mas cujos cabelos só iam até os ombros; Rincón Muro havia cortado o cabelo havia quinze dias, para tirar retrato e pedir emprego na polícia municipal. Os testemunhos dos repórteres são decisivos para desarticular o caso contra Rincón Muro, segundo seu advogado. Jorge Pacheco também garante que foi forçado a assinar a declaração. Foi preso em outra cidade do norte do México. Dirigia uma caminhonete que, segundo ele, havia comprado de Gabriel González, e que as autoridades garantem que foi pagamento pela organização do crime. Jorge Pacheco é acusado de ter contratado os participantes por ordem direta de Gabriel. "Me mantiveram no hotel e me torturaram durante sete dias." Uma máquina de escrever, Pacheco no chão, algemado, policiais que entravam e saíam do banheiro drogados. "Estavam escrevendo o que queriam." Segundo Pacheco, que é analfabeto, assinou um documento que nunca leu. Na declaração, Pacheco supostamente confessou que os irmãos Ismael e Gabriel González Gutiérrez organizaram o assassinato a mando de El Jamillo e o pagaram para encontrar alguém que executasse o crime. Miguel e Vidal Zamora Lara são os outros processados. Segundo a investigação, Zamora Lara confessou ter participado do assassinato e apontou Pacheco e Rincón Muro como seus cúmplices. Segundo seu depoimento, também refutado pela defesa, Gabriel González pagou-lhe US$ 2.000 em troca de que lhes dissesse quem era Benjamín Flores. Nos primeiros dias dos interrogatórios, foram mencionados mais nomes que desapareceram da investigação com o passar do tempo. Leobardo Pérez Ayala, José Pedro Valdez Gámez, Javier Ayala Garibay e Carlos Pacheco García. A rapidez com que o caso foi armado contrasta agora com a lentidão em está tendo prosseguimento. "O caso não está lento por problemas do tribunal", garante a juíza Santa Adelina Flores Montoya, na cidade de Hermosillo. "Nosso interesse é no sentido de fazer justiça. Temos tentado fazer isso o mais rápido possível", disse a juíza, encarregada de mais cem casos. O progresso foi lento, em parte, porque as autoridades decidiram mudar o julgamento para uma cidade a oito horas de carro do local do crime, San Luis Río Colorado. "Foi uma decisão totalmente arbitrária e dolosa que dificultou a defesa", disse Silva Calles, advogado dos quatro acusados. "Achamos que era uma forma de atrasar o caso", acredita Melgoza, do La Prensa. Na justiça mexicana, tudo é feito por escrito. Nesse processo, os confrontos entre os acusados e acusadores foram feitos no papel. A prisão de Gabriel González e seus irmãos nos Estados Unidos avivou a esperança de que seria possível esclarecer o assassinato de Benjamín Flores. Entretanto, não há muito motivo para otimismo. Gabriel e seus irmãos deverão enfrentar o primeiro julgamento e servir nos Estados Unidos a sentença que lhes for designada, antes de serem extraditados para o México para responder às acusações de que são alvo. Gabriel González seria julgado pelo assassinato de Benjamín Flores somente se fosse absolvido nos Estados Unidos e o julgamento de extradição fosse rápido. Quanto a Jaime González, a empolgação que se seguiu à sua prisão parece se diluir agora. "Estamos desesperançados, não há nenhum interesse por resolver", lamentou Melgoza. Segundo Silva Calles, nesses três anos a Procuradoria não acrescentou mais provas aos autos do processo que apoiassem sua versão sobre a participação de Jaime González; constam apenas as que descartou o juiz que o liberou-o da acusação. "Temo que, apesar do acúmulo de provas, a sentença não nos seja favorável. Tenho minhas desconfianças. É um absurdo para a polícia de Sonora dizer que são inocentes. O que aconteceria? Vão utilizar todos os meios que puderem", disse o advogado de defesa. A página negra tem sido publicada quinzenalmente nos últimos três anos e será novamente publicada em 15 de julho. "Vamos mudar o texto. Vamos desafiar Vicente Fox (presidente eleito do México) para que decida o assunto. É nosso último recurso", disse Humberto Melgoza.

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