30 Outubro 2012
Uma pedra no sapato
Do topo da montanha, o mundo gira, pequeno, enquanto o vento sopra mais forte. Uma súbita tonteira, um suor frio, um zumbido nos ouvidos. Sintomas de enjôo causado pela altitude que todos os estrangeiros sentem na Bolívia. Aqui, há mais de 4.000 metros acima do nível do mar, pode-se ver ao longe, seguindo-se o moreno dedo indicador, um campo distante próximo a uma caixa d'água na qual Juan Carlos Encima caiu no domingo, 29 de julho. Ele foi o primeiro jornalista da Bolívia a ser assassinado em muitos anos.
Será que era o jornalista certo no lugar errado ou o jornalista errado no lugar certo? Apenas um jornalista, que não estava, aparentemente, em nenhuma missão jornalística, carregando uma câmara e um gravador no meio de um tumulto de disparos e de pedras. E que, atingido por uma bala, esperou pelo socorro que chegou tarde demais.
O povo de Catavi, na província de Los Andes, a 50 km de La Paz, tentava se defender de uma invasão de 50 a 60 pessoas armadas, disseram. Era domingo, muito cedo, o sol acabara de nascer. Encinas, ferido no abdômen, segundo o relatório forênsico, foi cercado pelo disparo de nove balas calibre 9 mm, que a polícia reuniu como evidência.
Outra bala atingiu o braço de Juan Mario Ticona Limachi, residente do local. Ao que parece, o sangue amedrontou os agressores que se retiraram imediatamente nos ônibus nos quais haviam chegado a Catavi depois de passar por uma estrada empoeirada castigada pelo tráfico de caminhões.
Encinas, que sentia muita dor, segundo outro morador do local, Manuel Quiñajo Mamani, teve de esperar, das 6h30 ou 7 até depois das 10 horas para ser levado para a clínica San Martín de Porres, de El Alto, a 19 km de La Paz. "Mas morreu por hemorragia interna e anemia profunda", disse seu cunhado, René Falcón. Os primeiros socorros que recebeu a caminho da clínica, soro e oxigênio, não puderam salvá-lo.
Por que Encinas estava em Catavi? Sua mulher, Betty Falcón, era membro da Cooperativa Multiactiva Catavi Limitada, a qual possui há muito tempo a concessão para a exploração de depósitos de calcário. A cidade, que tem 208 habitantes, vive da venda para uma empresa de cimento. A cidade é humilde, com casas pequenas e sem janelas e uma praça central vazia. Fica apenas a alguns quarteirões da estrada para El Alto. É a cidade mais pobre da América Latina, segundo Mauricio Carrasco Ayala, chefe de redação do jornal diário El Diario, de La Paz.
Longe da paz
A mulher de Feliciano Ticona Mamani, um dos homens mais velhos de Catavi, chora desde então. Só dorme durante o dia e à noite pensa que quem matou Encina e feriu Juan Mario Ticona Limachi voltará. Ticona, que fala espanhol misturado com o idioma local, aymara, diz que atiraram contra eles com revólveres de 9mm calibre, conforme declarado no relatório policial.
"Somos camponeses e estamos desprotegidos", diz Marcelo Huaipa.
Estão em Catavi, bem perto de La Paz. Mas na verdade estão a muitos quilômetros da paz. Desde a morte de Encinas, um repórter popular, colaborador para noticiários de televisão e um programa de rádio, esperam outro ataque de um grupo que, segundo eles, está tentando lhes roubar seu ganha pão: a exploração de depósitos de calcário nas montanhas.
O conflito, que está sendo mediado pelo Instituto Nacional de Cooperativas, subordinado ao ministério do Trabalho, dura três anos. Encinas, de 39 anos, estava do lado dos moradores de Catavi, aqueles que, como sua mulher, pertencem à Cooperativa Multiactiva. Quando chegou o domingo, sabiam que seriam atacados pelas mesmas pessoas que um ano antes, em 5 de julho de 2000, tinham destruído sua câmara enquanto fazia a cobertura do confronto, em meio a um tiroteio, para o noticiário "Enlace", do Canal 21, de La Paz.
Dessa vez sua situação era, ou parecia ser, diferente. "Acho que tomou partido por causa do papel de sua mulher", sugere Ramiro Linares, diretor de produção do Canal 24, em El Alto. Encinas não era funcionário da empresa, mas colaborava para os programas "Impacto Informativo"e para o programa "Tiempo Nuevo", da Radio Libertad. Estava também envolvido no Sindicato dos Trabalhadores da Imprensa em El Alto. A maioria deles lembram dele como um bom amigo, gentil, alegre e otimista.
Depois dos conflitos, o juiz de instrução penal Alfredo Jaimes, da Corte Suprema de El Alto, emitiu, a pedido do promotor Waldo López Paiva, um mandado de prisão para oito pessoas, que foram libertadas sob fiança e posteriormente presas novamente. São elas: Edgar Mamani Limachi, Julio Limachi Mamani, Eugenio Limachi Mamani, Félix Loza Mamani, Teodoro Limachi Mamani, Juan Laruta Quispe, Agustín Mata Condori e Juan Francisco Limachi Quispe. Apesar da repetição dos sobrenomes, não há parentesco entre Limachi e Mamani.
"Sou um juiz cuidadoso", disse James. "Não sei se o jornalista estava fazendo alguma reportagem. Os suspeitos foram libertados segundo os termos do artigo 16 da Constituição e do artigo 6o do novo Código Penal, que supõe inocência até que se prove o contrário. A defesa apresentou uma série de documentos, tais como contas de luz e de água, e certidões de casamento, provando que são residentes de La Paz. Não tinham obrigação de fazê-lo."
Só o promotor López Paiva tem autoridade para ordenar prisões. O juiz, conforme explicou, não pode fazê-lo sem ser solicitado. A investigação tem inicialmente um prazo de seis meses. Entre os suspeitos de ter atirado estão dois sargentos da Força Aérea boliviana, Renato Limachi Ticona e Humberto Alvaro Quispe Limachi, de 22 e 23 anos, que são primos. Foram enviados para Santa Cruz de la Sierra, a 500 km de La Paz, e para a base de El Alto, respectivamente.
"Isso é uma barbaridade, uma irresponsabilidade, que pretende desprestigiar a instituição", disse o coronel Víctor Maldonado Guzmán, diretor-geral de relações públicas da Força Aérea. "Esses rapazes nem tiraram suas armas da caixa, estão como vieram da fábrica. Um revólver de 9mm de calibre não é necessariamente uma arma militar. Qualquer um pode comprar um."
Troféu de guerra
É comum entre o povo do interior nos Andes, segundo Roberto de la Cruz, jornalista do El Diario, que o soldado ¿? volte para casa com um troféu de guerra. Uma arma roubada, geralmente, como testemunho de que prestou serviço militar. Dois rifles Mauser foram confiscados antes do confronto de 29 de julho das pessoas que atacaram os membros da cooperativa de Catavi.
O país tem sido assolado ultimamente por manifestações de camponeses e mineiros que pedem mais atenção por parte do governo. O ex-ditador Hugo Banzer renunciou à presidência por ter câncer e, em 7 de agosto, assumiu o cargo o vice-presidente Jorge Quiroga.
O presidente da Sociedade Interamericana de Imprensa, Danilo Arbilla, editor do semanário Búsqueda, Montevidéu, Uruguai, declarou "estado de alerta" devido à intensificação da violência contra jornalistas na América Latina. Apenas esse ano, com o assassinato de Encinas e Mário Almeida Filho, no Brasil, o número de jornalistas assassinados subiu para 13 (sete na Colômbia, dois no México e um na Bolívia, Brasil, Costa Rica e Paraguai, respectivamente). Por esse motivo, Alberto Ibargüen, presidente da Comissão de Impunidade da SIP e diretor do The Miami Herald, da Flórida, Razón por la cual Alberto Ibargüen, presidente de la Comisión de Impunidad de la SIP y director de The Miami Herald, de Florida, pedir aos governos dos hemisférios que tomem medidas para solucionar os crimes e levar os culpados à justiça.
O estopim do escândalo na Bolívia foi uma carta da organização Repórteres sem Fronteiras, dirigida ao presidente Quiroga, na qual seu secretário-geral, Robert Ménard, pede, de Paris, a identificação e condenação dos responsáveis pelo assassinato de Encinas, e uma investigação que demonstre respeito pela liberdade de imprensa.
Segundo o coronel Luis Caballero, diretor da Polícia Técnica Judicial (PTJ), de El Alto, não houve fogo cruzado em Catavi. Nem uma chamada telefônica para alertar seus homens, antes das 10 horas, do estado grave de Encinas.
"Encina deve ter ido acompanhar sua esposa", disse. "Havia tido um desentendimento conosco sobre uma investigação criminal e até onde sei não foi ameaçado. A hipótese para o confronto tem sido a da posse da montanha para a exploração do calcário. Os dois lados sabiam que iria haver um enfrentamento naquela manhã."
Exposição excessiva
Na palma da mão direita de Eugenio Limachi Mamani, um dos detidos, a polícia encontrou provas de que ele havia disparado o gatilho de uma arma. Mas, segundo Caballero, quando se quer matar alguém aponta-se para a cabeça ou coração, não para o estômago, como foi o caso de Encinas, nem para o braço, como foi o caso de Juan Mario Ticona Limachi.
Encinas tem três filhas: Betty Pamela, de 19 anos; Cinthia Gabriela, de 17, e Carla Angelina, de 8. Seu cunhado, René, disse que haveria uma reunião da Cooperativa naquele dia. "Ele sempre acompanhou o conflito de perto", disse. "Vivia em La Paz, mas meus pais e minha irmã são de Catavi. Garanto que os dois sargentos da Força Aérea estavam lá e que nos defendemos como pudemos, jogando pedras, enquanto eles disparavam contra nós."
O coronel Maldonado se mostra indignado: "Os sargentos Limachi Ticona e Quispe Limachi não receberam nenhuma intimação da polícia nem da corte", disse. "Naquele dia, um deles estava em Santa Cruz e o outro jogava futebol em El Alto. Você acha que um canal de televisão vai cobrir um confronto de camponeses às 6 ou 7 horas da manhã de un domingo? Entretanto, a Força Aérea não tem intenção de acobertar coisas desse tipo. Se algum de seus membros está envolvido, deverá responder por isso. Mas não parece ser o caso até que se demonstre o contrário. Não podemos nos guiar por especulações de meios de comunicação e agências de notícias internacionais. Nem nos consultaram. Você é o primeiro a nos procurar."
Na câmara e no gravador de Encinas, em poder da família, não há registros dos fatos. No Canal 24, para o qual colaborava, a notícia de sua morte foi como uma bomba. Encinas estava organizando com Linhares, o diretor de produção, um festival folclórico.
Em Catavi, o choque foi ainda maior: "Eles não são daqui", disse Gregorio Mamani. "São contratados por outros que têm trabalhos estáveis, como uma papelaria ou Coca-Cola, e recebem seus salários regulares e bônus no Natal enquanto nós dependemos apenas do calcário."
E ele olha, taciturno, para a montanha, de cujo topo dois homens comunicaram por telefones celulares, por volta das 3 horas daquela trágica manhã de domingo, que estavam chegando ônibus. Era um sinal para os moradores, reunidos na praça da cidade, para se preparar para evitar que suas casas fossem saqueadas. "Juan Carlos ia na frente da coluna com sua câmara e seu gravador", disse Manuel Quiñajo Mamani.
Segundo os moradores, os agressores conheciam Encinas. Com sua câmara e seu gravador era uma pedra no sapato. Mas estava excessivamente exposto, se, como dizem, ia à frente de uma coluna de defesa do povo, ainda que as armas que carregasse não fossem fatais. Ou talvez fossem mais fortes do que as balas, de um lado, e as pedras, de outro.