30 Outubro 2012

Um idealista apaixonado por Jornalismo

Aa
Jovem ingênuo e dócil. Essa imagem foi o que restou de Nivanildo Barbosa Lima, 27 anos, encontrado morto em 22 de julho de 1995 na represa Paulo Afonso (PA-4), localizada na cidade de mesmo nome, no norte da Bahia. O rapaz que queria cursar Jornalismo e falar no rádio, mas não teve tempo de concretizar seus sonhos, participava ativamente do jornal Ponto de Encontro, da Igreja Católica, por idealismo e vocação. O tablóide registrava a voz dos movimentos populares e chegava às cidades de Paulo Afonso e da vizinha Glória com denúncias sobre os grupos de extermínio da região. “Há quem diga que a morte de Nivanildo foi um aviso para a direção do jornal”, acredita o padre José Wilson Andrade, que atuou na Paróquia Sagrada Família de 1991 até fevereiro de 2002 em Paulo Afonso, ajudou a fundar o Ponto de Encontro, e hoje faz o curso de Mestrado em Belo Horizonte. Toda as pessoas que, de alguma forma, fizeram críticas aos grupos de extermínio, foram ameaçadas. A revista Gazeta da Bahia chegou a mencionar uma lista deste grupo, que ficou conhecido como “Os Sentenciados”. Na lista havia nomes de jornalistas, radialistas, religiosos, sindicalistas - entre eles, o de Nivanildo. Ponto de Encontro cumpria um papel de oposição numa cidade em que a maior parte dos jornais e das rádios estavam sob a influência do Partido da Frente Liberal (PFL). Nivanildo ingressou na equipe quando o jornal foi ampliado e passou a ter dois cadernos. Ele era então um militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B). Escrevia uma coluna de política e participava da discussão de pautas. “Nivanildo dizia que o jornal não podia ficar calado sobre o crime organizado, embora não escrevesse diretamente sobre isso”, lembra o padre. O próprio Nivanildo ajudou a organizar uma passeata contra os desmandos e os assassinatos cometidos pelos grupos de extermínio. Desde criança o rapaz mostrava um interesse especial pelo Jornalismo. Tinha cursado apenas o 1º Grau, mas adorava ler livros e jornais, devorando-os com a mesma voracidade com que assistia aos noticiários pela televisão. Chorou quando ouviu a notícia da chacina dos meninos de rua na frente da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, e desabafou: “Isso é uma injustiça”. A família do rapaz, ainda traumatizada pela forma brutal como ele apareceu morto na represa de Paulo Afonso, não quer dar declarações. Quase 13 anos depois do ocorrido, os pais deixaram a casa onde viviam quando Nivanildo estava vivo. Confiam apenas na Justiça de Deus.
$.-
Ameaças antes de morrer Familiares lembram que, às 8h do dia em que desapareceu, Nivanildo estava em casa quando recebeu um telefonema, passou a mão na cabeça e disse “Meu Deus”. Depois, falou que tinha de ir até a Igreja Perpétuo Socorro. E desde então nunca mais apareceu. Na tarde do dia seguinte, a irmã de Nivanildo atendeu uma ligação de um homem. Sem se identificar, o homem afirmou que o jovem estava amarrado no Varandão (uma chácara próxima ao aeroporto), com dois rapazes e uma moça. Outra informação que consta nos depoimentos prestados à polícia foi dada por um amigo da família, que teria avistado Nivanildo com uma moça loira, entre 9h30min e 10h do dia em que desapareceu, sem ter certeza se a mulher estava acompanhando Nivanildo ou se os dois “andavam casualmente”. Por duas vezes, pelo menos, Nivanildo disse ter recebido ameaças. Numa reunião do Ponto de Encontro, comentou com o padre Andrade: “Esses caras estão querendo me matar”, sem entrar em detalhes. Na tarde antes de desaparecer, Nivanildo ligou para Aníbal Alves Nunes, editor da revista Gazeta da Bahia, e falou que estava sendo seguido e que havia recebido telefonemas avisando que não deveria ter publicado artigos sobre os grupos de extermínio. Quando o corpo de Nivanildo foi encontrado na barragem, houve insinuações de que ele havia se suicidado porque teve uma crise existencial. Os familiares e os amigos sempre rebateram essa versão. Os jornalistas e radialistas que denunciaram os grupos de extermínio em Paulo Afonso, na mesma época de Nivanildo, também sofreram perseguições e ameaças. O jornalista Roberto Borges Evangelista, 44 anos, conhecido como Beto Borges, em 2002 é assessor da Prefeitura de Jeremoabo, na Bahia, mas durante os anos 90 teve de sair de Paulo Afonso para se manter vivo. As ameaças eram uma represália às denúncias que fazia na rádio Cultura, onde tinha um programa de música e de notícias policiais, e no jornal Opus, em que ele dizia abertamente os nomes dos envolvidos nos grupos de extermínio. Borges era também membro do Conselho da Comunidade da Comarca de Paulo Afonso, que fazia o acompanhamento das condições dos presídios. Durante um tempo, recebeu “recados” para se calar. A “gota d’água” que o fez sair da cidade foi quando um dos “clientes” do Conselho da Comunidade - um preso que havia escrito uma carta de dentro da cadeia denunciando torturas feitas pelo Sargento Martins - apareceu morto, semi-enterrado na entrada da casa do presidente do Conselho: estava escalpelado com facão e tinha as mãos cortadas. Como Borges, Luiz José Ferreira de Brito, conhecido como Bob Charles, saiu de Paulo Afonso quando as ameaças se tornaram mais freqüentes. Hoje é dono de um jornal independente e assessor de um vereador, mas nos anos 90 trabalhava numa rádio em que denunciava o crime organizado, citando nomes. “A polícia mandava recados: você pode amanhecer com a boca cheia de formigas”, recorda. Aníbal Alves Nunes, editor da revista Gazeta da Bahia, sofreu dois atentados por conta de sua persistência. “Todo crime que acontecia eu registrava, mas não divulgava os nomes de mandantes, por isso ainda estou vivo”, avalia. “Eu divulgava sistematicamente, o que gerou a vinda de um grupo de Salvador para fazer o levantamento completo sobre os crimes: como matavam, como queimavam os corpos - eram crimes muito semelhantes”. Contexto político da morte Em 1995, a cidade de Paulo Afonso, a 507 quilômetros ao norte de Salvador, ainda vivia em torno da Companhia Hidrelétrica de São Francisco (CHESF). Tinha cerca de 80 mil habitantes (hoje são 96,4 mil, de acordo com o censo de 2000). A represa que modificou o cartão postal da cidade, geralmente ilustrado pela cachoeiras de Paulo Afonso, trouxe o desenvolvimento para a região. Com o fim das obras da barragem, no entanto, os moradores de Paulo Afonso passaram a sentir os reflexos do desemprego. “A CHESF, que empregava em torno de 15 mil funcionários em 1995, tem hoje em torno de 2 mil”, diz Nunes, da Gazeta da Bahia. Os cargos no comércio e na construção civil são escassos. Nunes lembra que uma boa parte dos moradores foi embora, outros se dedicam à pecuária, à agricultura e aos trabalhos nas cidades vizinhas. Mas a agricultura na região é irrisória devido aos longos períodos de seca. Ironicamente, o município tem uma das maiores arrecadações no Estado, devido à presença da hidrelétrica. Em meados dos anos 90, os jornais e as rádios denunciavam a atuação dos grupos de extermínio na região. Nunes explica que havia dois grupos rivais na cidade. Um deles era liderado pelo Sargento Martins, hoje preso. O outro, pelo capitão Carvalho Lima, que morreu em um confronto mal explicado pela polícia. O capitão Carvalho Lima chegou a ser vereador e teve seu mandado cassado. Embora um fosse subordinado ao outro, os dois se desentenderam e começaram a denunciar a participação recíproca em mortes e roubos na região. Padre Andrade acredita que a morte de Nivanildo pode estar associada ao fato de o jovem ter sido arrolado, a pedido do capitão Carvalho, como testemunha de crimes que teriam sido cometidos pelo Sargento Martins. Nivanildo teria inclusive dado uma entrevista numa rádio acusando o sargento. Martins foi condenado a 32 anos de prisão por duplo homicídio, como mandante de outro crime. Seu nome não é citado no inquérito da morte de Nivanildo. O juiz Abelardo Paulo da Matta Neto, da 8ª Vara Crime de Salvador, que foi juiz da Vara Crime de Paulo Afonso de 1993 a 1997, lembra que havia a suspeita de o sargento ser um dos mentores do esquadrão da morte na região. “Por falta de provas, ele não foi acusado por sua participação no crime organizado - a Justiça só trabalha com provas”, ressalta o juiz. Pela Internet, o próprio Martins se defende das acusações. No site amigosdosargentomartins.vilabol.uol.com.br/principal.html, ele se diz um “líder perseguido por ter denunciado um poderoso esquema de corrupção, furtos, tráfico de drogas, além de outros crimes praticados pelo capitão da Polícia Militar da Bahia, Carvalho Lima (...)”. A repercussão causada pela morte de Nivanildo e o crime ocorrido em Glória em que foi indiciado o sargento Martins ajudaram a mudar a realidade em Paulo Afonso. Rosalino dos Santos Almeida, juiz titular da 1ª Vara Cível de Paulo Afonso e substituto da Vara Crime em Glória, Rodelas e Chorrochó (cidades próximas), trabalha na região há 12 anos. Segundo Almeida, o sargento Martins só foi preso porque uma testemunha do crime praticado na cidade de Glória teve a coragem de depôr contra o policial em um inquérito. “O pessoal da igreja começou a levar as vítimas para a promotoria, e não para a delegacia, porque a Polícia Civil e a Militar tinham medo do sargento”, conta Almeida. Com a prisão de Martins, houve também uma reestruturação da polícia na região. Almeida é a favor de mudanças no sistema de investigação no Brasil. “É preciso criar uma forma de apurar o fato o mais próximo possível do ocorrido, senão as pessoas se esquecem dos detalhes, provas que podem ser valiosas para a condenação de quem praticou o delito - aí é trabalho dobrado e caso perdido”, reclama o juiz. “Na maior parte dos casos, as testemunhas voltam atrás nos depoimentos”. Morte de Nivanildo Barbosa Lima precisa ser investigada O minguado inquérito policial aberto em 22 de julho de 1995 para investigar a morte de Nivanildo Barbosa Lima, redator do jornal Ponto de Encontro, de Paulo Afonso, na Bahia, é um reflexo do desdém com que o caso vem sendo tratado desde então. De concreto, existe apenas um laudo de exame do cadáver feito no Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues, em Salvador, em agosto de 1995, que constatou morte devido a asfixia mecânica por afogamento. A polícia e o Ministério Público aceitaram, num primeiro momento, a versão de “morte natural” e não investigaram outras prováveis causas. Em 26 de outubro de 1998, a juíza Maria Auxiliadora Sobral Leite decidiu pelo arquivamento do caso. Em junho de 2002, o promotor de Justiça auxiliar da Comarca de Paulo Afonso, Hugo Casciano de Sant’Anna, resolveu dar andamento ao pedido de reabertura do inquérito para apurar novas provas. Um ano antes, uma outra promotora já havia pedido que as investigações prosseguissem e que a polícia colhesse novos depoimentos, o que não foi feito. Questionada pela SIP, em novembro de 2002, a promotora de Justiça de Paulo Afonso, Izabel Cristina Vitória Santos, encaminhou ao Coordenador Regional de Polícia de Paulo Afonso, Celso Lima Bezerra, um pedido de informações sobre o andamento das investigações criminais. Bezerra encaminhou o inquérito para a delegacia de Paulo Afonso para dar prosseguimento às investigações. A pedido da SIP, o perito e professor de criminalística e balística, Domingos Tocchetto, que já colaborou para a solução de casos de repercussão nacional, avaliou o laudo que consta no inquérito sobre a morte de Nivanildo. Segundo Tocchetto, um laudo de asfixia mecânica é a maneira mais simples de se descartar um inquérito. Mas quem garante que o afogamento não foi provocado? “Há uma série de pontos que precisam ser esclarecidos”, acredita. Ele apontou algumas dúvidas a partir da leitura do laudo do cadáver: 1. No laudo diz que foram feitos exames de sangue e análise das vísceras, além de alcoolemia (e, segundo os dados da alcoolemia, Nivanildo estaria bêbado). Por que o resultado destes exames não está anexado ao inquérito? 2. Quando o corpo foi encontrado, houve boatos de que ele estaria sem a língua, ou com a língua cortada. No laudo, há uma descrição detalhada da boca, e não é mencionada a questão da língua. Não foram ouvidas testemunhas sobre esse fato. 3. As fotos que constam no inquérito aparentemente foram todas feitas por um jornalista, Aníbal Alves Nunes, e não por um perito. Nas fotos, Nivanildo aparece sempre do lado esquerdo, onde se vê lesões no supercílio e na orelha. Mas o laudo aponta a “ausência do lóbulo do pavilhão auricular direito com destruição parcial”. Por que as fotos mostram só um lado se houve lesões do outro também? Tocchetto estranha estas lesões. Por que os peixes iriam comer uma só orelha, e deixar ilesas outras partes expostas do corpo? 4. No exame dos ouvidos consta “ausência de pavilhão auricular esquerdo e lóbulo do ´pulmão`”. O perito questiona se esse “lóbulo do pulmão” seria um erro de digitação, porque está citado junto com o exame da parte externa do organismo, e não da parte interna. 5. O laudo identifica uma ferida na região nasal, mas não explica qual a origem (em relação às outras lesões, aponta como sendo possivelmente causadas por animais necrófagos). Há também uma lesão irregular na região superciliar direita. No laudo, consta que possa ter sido causada por animais necrófagos. Mas uma lesão deste tipo pode sugerir também que Nivanildo tenha sido agredido ou levado alguma batida antes de cair na água. 6. As fotos anexadas ao inquérito só mostram lesões na região superciliar esquerda. 7. As lesões foram apontadas como sendo produzidas depois da morte, por animais “marinhos”. Nivanildo estava num lago de uma represa - existem animais marinhos ali, ou houve um problema de digitação? 8. A análise da calota (porção superior da caixa craniana) identificou uma “congestão difusa”. O perito questiona o que querem dizer com a expressão e qual seria a causa do derrame de sangue, como é indicado pelo termo “impregnação hemática”. Pode ter sido uma pancada, uma queda, ou uma batida, por exemplo. 9. O laudo não descarta a hipótese e nem investiga a possibilidade de, antes de ter se afogado, Nivanildo ter recebido uma paulada ou sido pressionado para dentro da água. Segundo o perito, a exumação do corpo pode identificar se há ossos fraturados na cabeça ou na face - um indicativo de uma pancada. No caso de se realizar uma exumação, é aconselhável fazer a varredura de todo o corpo com Raio X para verificar se existe a presença de algum projétil. 10. Por que não foi feito um levantamento dos últimos momentos de vida de Nivanildo? Se ele havia bebido, onde bebeu? Com quem? 11. A quantos metros da barragem ele estava? Qual a posição em que foi encontrado? Por que não há fotos feitas por peritos no local?

Compartilhar

0