Mais de três anos depois de ter assumido o governo, o presidente Néstor Kirchner mostrou que ainda não entendeu como funciona a imprensa independente. Opiniões diferentes e até informações que discordem da visão oficial terminam geralmente em conflitos. A imprensa sofre com os problemas provocados por uma cultura política que indica possuir ainda traços de autoritarismo.
Nesse contexto, a imprensa faz seu trabalho com restrições. Estas se manifestam algumas vezes em pressões sutis, interferências nas comunicações, declarações disparatadas com alvo certo e insinuações sobre os meios de comunicação em que os jornalistas atacados trabalham. A distribuição de publicidade oficial é feita de forma arbitrária.
A senadora Cristina Fernández de Kirchner, durante sessão em que se discutiu a concessão de super poderes ao chefe de gabinete, criticou os meios de comunicação, qualificando-os como uma oposição não votada e perguntou que eleições ganharam os diretores dos meios de comunicação? Os jornalistas censuram o governo. É uma oposição na qual ninguém votou. O presidente Kirchner reforçou as críticas dizendo que alguns jornalistas me dão pena. Recomendo que sejam autocríticos, que investiguem, que estudem mais, que deixem de fazer lobby. Mais que liberdade de imprensa, trata-se de domínio de empresas. Cristina, disse o presidente notou com razão que alguns jornalistas agem corporativamente, que se defendem entre eles, que nem sequer reconhecem seus erros.
É paradoxal que o presidente peça à imprensa que se informe, quando o próprio governo não faz coletivas nem dá entrevistas e além de tudo não aprovou a lei de acesso a informações públicas. Há também dualidade por parte do presidente, já que o que pretende que exista nos meios privados não é aplicado aos estatais. Programas antigos foram retirados do ar porque eram contra a visão oficial, e esse foi o caso do programa matutino Desayuno, que era apresentado por Víctor Hugo Morales no Canal 7, de propriedade do estado.
Em 28 de setembro, o presidente Néstor Kirchner referiu-se a uma coluna escrita em 1978 no jornal Clarín atribuindo sua autoria ao colunista do La Nación, Joaquín Morales Solá. O artigo se referia ao ex-presidente da ditadura militar, Jorge Rafael Videla, e o descrevia com algumas características pessoais. Kirchner questionou como o colunista podia ter escrito positivamente sobre Videla antes e falar mal dele agora. Morales Solá disse que não escreveu a coluna e que naquela época as matérias não eram assinadas. O colunista recebeu dois telefonemas à meia-noite ameaçando-o, e sua família, se continuasse escrevendo contra o presidente.
Nesse mesmo dia, Jorge Fontevecchia, presidente da Editorial Perfil, recebeu uma ameaça por e-mail dizendo que sua integridade física e de seus filhos corria risco se ele continuasse criticando o governo. Crescem de forma assombrosa esses métodos de pressão, cujo objetivo é diminuir a credibilidade dos profissionais, meios ou políticos adversários e que apelam para qualquer argumento.
Em 2 de outubro, o autodenominado Frente Unidade Popular, ex-grupo de
piqueteros ligados ao presidente, convocou um ato em defesa de Kirchner em frente ao jornal La Nación.
Na província de Córdoba, o governador José Manuel De la Sota acusou novamente o La Voz del Interior de ser oposição ao seu governo, de impedi-lo de governar e de violar a ética jornalística. O governador disse em agosto que avalia a possibilidade de fazer uma apresentação à SIP para acusar o jornal por uma notícia sobre uma denúncia apresentada por legisladores ligados ao governador da capital de Córdoba, Luís Juez adversário de De la Sota , e sobre a qual não foi consultado.
O diretor do jornal El Progreso, Horacio Poggi, da cidade de Mariano Acosta, foi ameaçado de morte se publicasse informações sobre corrupção municipal.
Em junho, a Academia Nacional de Jornalismo denunciou a violação dos correios eletrônicos pessoais de vários profissionais, tais como Bartolomé Mitre, diretor do La Nación, de Daniel Santoro, jornalista do Clarín, de Luis Majul da televisão argentina, entre outros. Observou também que em Santa Cruz o programa de rádio Séptimo día, apresentado pelos jornalistas Héctor Barabino, Héctor López e Daniel Gatti, foi tirado do ar por diretores da emissora LU12 de Río Gallegos depois de dez anos consecutivos de existência sob ameaça de corte de publicidade oficial.
A investigação sobre espionagem de contas de correio eletrônico de políticos e jornalistas continua sem definição. Como tantos outros casos por questões semelhantes, este vai terminar em pizza porque não existem no país penas específicas nem técnicas adequadas para investigá-los e levá-los a julgamento. Não existem leis que tipifiquem como crime a violação de e-mails, e alguns juízes a comparam em suas sentenças a violações de correspondência por correio comum. Representantes do La Nación defendem um projeto para criminalizar a violação dos correios eletrônicos e pediram à Comissão Parlamentar de Assuntos Trabalhistas que esse tema seja abordado urgentemente.
Em Tucumán, onde o Poder Executivo adquiriu mais poderes desde a aprovação da nova Constituição, continuam os conflitos com os meios e instituições, que ficaram mais sérios quando se suspendeu o programa jornalístico do Canal 5 de televisão apresentado pelo jornalista Enrique García Hamilton, diretor do jornal La Gaceta de Tucumán.
O relatório anual do Freedom House, uma das instituições de defesa da democracia, direitos humanos e das liberdades em 194 países, informou em abril desse ano que a Argentina havia passado de 41º lugar, em 2005, para 45º em 2006 porque continuavam ocorrendo no país as perseguições, agressões e pressões aos meios de comunicação.
Em maio, o presidente Kirchner disse que os meios deveriam investigar a existência de uma lista da Secretaria de Informações do Estado (SIDE) que relacionava 200 jornalistas que cobraram por seu trabalho durante o governo do presidente De la Rúa.
A Associação de Entidades Jornalísticas Argentinas (Asociación de Entidades Periodísticas Argentinas - ADEPA) respondeu que se esses pagamentos existiram deveriam ser investigados pelo governo porque configuram atos de corrupção pura e simples.
A Argentina é um dos poucos países que não possui um recurso jurídico para obtenção de informações dos diferentes poderes do Estado. Em novembro passado, o controverso projeto de lei de acesso a informações públicas que restringia substancialmente o direito e não respeitava as normas constitucionais e de direito internacional foi arquivado.
O país também não possui uma legislação clara e específica que defina os procedimentos e os parâmetros para distribuição da publicidade oficial para garantir um sistema justo. Editorial Perfil, editora da revista Noticias e do semanário Perfil, entrou com recurso de amparo por discriminação, já que os jornais foram excluídos da lista dos que recebem publicidade oficial. O aparecimento, em agosto passado, de um recurso novo tal como o Fundo Fiduciário contra a discriminação do Estado, do semanário Perfil, não implica que a situação tenha piorado, mas que ainda não foi solucionada.
No que se refere à ação movida em janeiro de 2003 perante o Supremo Tribunal de Justiça pelo Diario Río Negro por causa de discriminação na concessão da publicidade oficial pelo governo de Neuquén depois que o jornal divulgou as supostas tentativas de suborno de suas autoridades, entre elas o governador, acaba de ocorrer algo muito preocupante. Em setembro, o procurador-geral, Esteban Righi, decidiu, considerando não haver norma que estabeleça a concessão de publicidade em relação às quais fazer o julgamento da ação, e que o amparo deve ser recusado. Sua opinião não está vinculada à decisão do Supremo Tribunal de Justiça, mas define uma linha de pensamento contrária à liberdade de expressão.
A Comissão de Comunicações e Informática da Câmara dos Deputados aprovou que se solicite ao Poder Executivo emitir um relatório explicando os critérios que utiliza para a concessão da publicidade oficial.
Aguarda-se um pronunciamento do Supremo Tribunal de Justiça sobre a ação movida pelo jornal Río Negro em janeiro de 2003 contra o governo de Neuquén, também por suposta discriminação na publicidade oficial. Esse problema é discutido também na Comissão de Comunicações e Informática da Câmara de Deputados que aprovou um pedido de relatórios ao Poder Executivo para que explique os critérios que utiliza na distribuição da publicidade oficial.
Os jornais El Territorio e La Opinión de Posadas, Misiones, também não recebem publicidade do governo da província porque se opõem à reforma da constituição que o governador dessa província, Carlos Rovira, pretende realizar para conseguir uma reeleição quase indefinida do seu mandato.
Em um relatório divulgado em junho, a organização não governamental Poder Cidadão observa que não parece haver nenhum critério objetivo na distribuição nem no aumento do gasto publicitário do valor estabelecido no orçamento de 2005.
Há também restrições às fotografias jornalísticas. O Supremo Tribunal de Justiça de Río Negro condenou o jornal dessa província a indenizar um promotor por publicar uma imagem do demandante obtida durante uma manifestação em julho de 1998. O caso representa um sério precedente e afeta o exercício da liberdade de imprensa, porque proíbe a divulgação de fotografias de funcionários públicos no exercício das suas funções e obtidas em local público.
Outra decisão judicial abre o debate sobre a liberdade de expressão porque condena o jornalista Tomás Sanz, editor da revista Humor, a um mês de prisão em suspenso (sem execução de sentença) por uma informação, publicada em 1991, sobre a existência de contas no exterior do senador Eduardo Menem. A notícia mencionava a fonte de informações da revista Brecha, do Uruguai, e também o desmentido de Menem. O Tribunal considerou que a Humor deveria ter verificado as informações, e com essa decisão afastou-se da doutrina do caso Campillary que diz que o jornalista é isento de responsabilidade quando atribui o conteúdo de uma informação a uma fonte pertinente, como fez a revista. Essa decisão já havia prescrito quando o Tribunal se pronunciou em 1998 e o caso foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O Tribunal atual validou a condenação alegando que se anteriormente o Tribunal não havia se pronunciado sobre a prescrição é porque aceitara que não havia prescrito.
Madrid, Espanha