Uruguai

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No último semestre acumulou-se uma grande quantidade de informações relativas ao estado da liberdade de imprensa. Ocorreram fatos contraditórios, alguns marcando um avanço para a liberdade fundamental dos seres humanos, e outros marcando um preocupante e perigoso retrocesso que contrasta com a tendência dos últimos anos e com a própria tradição democrática do país. Em fevereiro, a Associação de Jornais do Uruguai (ADYPU) assinou um novo contrato de distribuição com o Sindicato de Jornais e Revistas que, mesmo mantendo o monopólio existente há várias décadas, constitui um alívio para as publicações em difícil situação econômica. Este monopólio é bastante prejudicial aos interesses dos jornais e revistas, e já foi criticado em assembléias anteriores da SIP. Felizmente, chegou-se a um acordo após um ano de negociações com o sindicato. O resultado final positivo não consegue ocultar, tal como foi denunciado pela ADYPU, um fato extremamente grave que foi a séria interferência do Poder Executivo. Este obstruiu as negociações paralelas que a associação realizava com o Correio Nacional em busca de um sistema alternativo de distribuição, que atendesse melhor os interesses das publicações, depois que as negociações com os vendedores fracassaram. A súbita intervenção do Poder Executivo em favor do Sindicato dos Vendedores, reunindo-se com seus líderes em várias ocasiões mas nunca com os representantes da ADYPU, marcou um fato sem precedentes no país, certamente muito preocupante. A ação presidencial foi reprovada pela maioria da forças políticas, inclusive por dois dos três membros da diretoria do Correio, e houve até conversas sobre um possível processo de impeachment. Estes dois membros não puderam evitar que o organismo cometesse uma ofensa que acarretou o pagamento de uma pesada multa. O pagamento da multa, porém, não foi reclamado pela ADYPU, por causa da firme e coerente atitude desses membros da diretoria do Correio. A crise na imprensa despertou a sensibilidade das forças políticas, que adotaram medidas na área de tributação. O Parlamento estendeu à toda a imprensa um sistema de tributação e de seguro social anteriormente disponível apenas para o interior do país. Porém, até neste caso apareceu uma dificuldade: a legislação está demorando para entrar em vigor, pois a Receita Federal, que está subordinada ao Poder Executivo, tem dificultado a regulamentação e aplicação do novo sistema. O fato está mantendo os meios em alerta. Depois de mais de quatro anos de investigações, um tribunal criminal processou dois funcionários públicos por uma suposta manipulação ilegal da publicidade oficial, utilizando bases discriminatórias sem a mínima referência a critérios técnicos, para favorecer ou castigar os meios de comunicação. O Tribunal Judicial, que conta também com um relatório do órgão anticorrupção, continua as investigações, chegando a ampliá-las. Deve-se destacar que esta ação judicial responde a denúncias de meios uruguaios e a uma denúncia formal feita pela SIP em cumprimento à uma resolução da assembléia realizada em Houston em 1998. Quanto à publicidade oficial, o governo atual, além dos cortes no orçamento publicitário que a situação econômica exige, corrigiu algumas práticas anteriores. Subsistem, porém, alguns casos isolados possíveis pela autonomia de determinadas instituições onde falta a transparência, mas esses não podem ser imputados ao governo nacional. Na área jurídica, houve várias decisões judiciais, audiências e determinações de tribunais de recursos que fortaleceram a liberdade de imprensa. O Supremo Tribunal de Justiça concordou em estudar um recurso de inconstitucionalidade sobre a aplicação do direito de resposta, designando-o como uma violação às garantias constitucionais à liberdade de expressão e à igualdade entre todos os cidadãos. Uma interpretação positiva deste recurso implicaria um passo extraordinário para a liberdade de expressão no continente. Houve, entretanto, alguns fatos alarmantes na área judicial. Um tribunal de uma cidade do interior do país condenou a sete meses de prisão um jornalista de rádio por denunciar uma suposta fraude no uso do nome de uma proeminente organização filantrópica para solicitar doações ao público, sem repassá-las à caridade. A sentença foi suspensa. Essa condenação por difamação revela uma postura judicial muito perigosa que se contrapõe à doutrina internacional amplamente aceita. Mais grave é o fato de que a mesma juíza anteriormente havia outorgado o direito de resposta aos demandantes, obrigando inclusive que a emissora de rádio transmitisse a resposta duas vezes. E ainda mais grave, dois meses antes o promotor que tinha pedido a sentença de prisão para o jornalista, tinha arquivado um processo por agressão e perseguição, apoiado pela confissão do agressor e testemunhas, ingressado pelo jornalista contra o demandante. Houve outras sentenças negativas relacionadas ao direito de resposta em quase todos os casos de primeira instância, sentenças que, em sua maioria, foram revogadas pelos juízes de tribunais de recursos. A mais séria ameaça contra a liberdade de imprensa vem dos promotores do Ministério Público. Deve-se destacar que o sistema legal uruguaio tem amplos procedimentos processuais que constituem um respaldo fundamental para o exercício da liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, porém, existem alguns promotores que defendem uma doutrina que se opõe aos jornalistas e à liberdade de imprensa, e que em alguns casos foi atribuída a ações do promotor-geral. A esse respeito, houve denúncias públicas e inclusive investigações sobre interferências fora do escopo da autoridade do promotor-geral. Um fato que provocou grande alarme teve como ponto de partida um artigo sobre a liberdade de imprensa e privacidade publicado pelo procurador-geral, Oscar Darío Peri Valdez, em uma revista dirigida a todos os promotores, com o objetivo declarado de ser “uma ferramenta útil para a atividade jurídica futura”. O documento constitui a materialização de uma das doutrinas mais retrógradas sobre a interpretação da liberdade de expressão e inclusive ressuscita linhas de pensamento da Nova Ordem Mundial da Informação. Peri Valdez reconhece o direito à informação como parte da liberdade de expressão, conforme estabelecido pelas convenções internacionais. Continua, entretanto, para afirmar que se trata de um direito relativo e o rejeita como direito individual inerente ao ser humano, qualificando-o como um direito coletivo e social. Sugere também que os promotores devem recorrer aos códigos de ética, no país que não tem código de ética profissional ou oficial, para resolver as questões relativas ao exercício do jornalismo e menciona, como um dos exemplos, o código de ética incluído na lei de afiliação obrigatória da Venezuela. Também resgata um código internacional de ética jornalística que apresenta como sendo da UNESCO, mas que é exclusivamente um documento originado em uma reunião de consultoria patrocinada pela UNESCO em 1983, de oito organizações jornalísticas internacionais, algumas delas não mais existentes e outras pouco representativas. Naquele ano, essas organizações elaboraram um documento de claro apoio à Nova Ordem Mundial da Informação, conforme expresso textualmente. Na mesma linha de raciocínio, o promotor eleva a privacidade à condição de direito individual absoluto, algo que não está estabelecido pela constituição uruguaia. Ele, posteriormente, manipula várias decisões judiciais e doutrinas legais para construir uma espécie de muro intransponível para que os promotores defendam os atos dos governantes e dos funcionários públicos, que atua essencialmente como uma barreira para a transparência do governo. A Associação da Imprensa Uruguaia rejeitou e denunciou o fato perante o presidente da República e o ministro da Educação e Cultura, que exercem autoridade sobre o promotor-geral, além de ao Supremo Tribunal da Justiça, às comissões de direitos humanos do parlamento e organismos internacionais. Solicitou também ao Poder Executivo a exoneração do promotor. No documento de queixa, a APU rejeita a adoção de uma filosofia semelhante à da ditadura e critica atuações anteriores do promotor, negando ao público o acesso à informação e tentando influenciar o corpo de promotores. Os meios estão também preocupados com a falta de certas proteções legais para impedir o uso ilegal de conteúdos de imprensa, que são comercializados no mesmo dia da publicação e poucos minutos depois de chegarem à rua, por empresas que distribuem seus artigos pela Internet ou web sites. O vácuo legal é alarmante, assim como uma atitude falha da justiça, que, com base nas convenções internacionais, poderia bloquear o uso indevido de tais conteúdos, como uma violação às leis de direitos autorais. Mais grave ainda é o fato de que muitos departamentos governamentais assinam esses serviços, que se apropriam das informações dos meios de imprensa sem autorização e as vendem em benefício próprio.

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