Este ano talvez tenha sido o mais complicado em muito tempo para o funcionamento das instituições democráticas e para o exercício do jornalismo independente por causa de uma escalada do poder político contra os meios de comunicação que culminou com o debate público e parlamentar da nova lei de Serviços Audiovisuais.
Durante esse período, o trabalho dos jornalistas foi desacreditado inúmeras vezes e esses incidentes não contribuem para o livre diálogo democrático, que deve se realizar com moderação, tolerância e bom senso. Essa estratégia de confronto foi a base, também, para que o governo tomasse medidas, ações e regulamentações destinadas a restringir e enfraquecer o espaço doe meios de comunicação.
O que poderia ter sido um debate que contribuiria para o fortalecimento dos meios de comunicação e do sistema democrático terminou sendo embate realizado à sombra de antigos revanchismos.
A lei de meios audiovisuais foi qualificada por seus defensores como a mãe de todas as batalhas. O governo se esqueceu de que a responsabilidade do Estado é estabelecer regras claras e duradouras que garantam o investimento em tecnologia, a igualdade entre os diferentes meios de comunicação audiovisual e o equilíbrio entre os interesses em jogo.
A lei, aprovada pelo Congresso, foi necessária e oportuna para anular a anterior, da ditadura militar, e é provável que algumas de suas disposições sejam plausíveis, ou que tenham sido votadas com propósitos louváveis, mas o governo se concentrou mais em assegurar o controle dos conteúdos e impedir o fortalecimento dos meios.
Não é justo que as esferas oficiais considerem nesse debate como inimigos todos os que não concordem com os conteúdos e objetivos do seu projeto político. E muito menos que se utilizem de métodos agressivos para desacreditá-los.
Durante este período de consultas e de debates legislativos sobre a lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, N° 26522, o governo enfrentou duramente os meios de comunicação. Um dos principais grupos jornalísticos foi não só alvo de perseguições e assédio, mas de ações diretas cujo objetivo era enfraquecê-lo economicamente. Com a desculpa ou propósito de evitar a concentração excessiva de meios, que se predica como objetivo da nova lei, lamentavelmente terminou-se limitando a radiodifusão e a televisão privada.
A liberdade de expressão exige o distanciamento de qualquer sistema político, seja governo ou oposição. Este é o verdadeiro sentido do Art. 32 da Constituição Nacional que proíbe promulgar leis que restrinjam a liberdade de imprensa ou a submetam ao foro federal, e o Art. 14 garante a expressão das ideias sem censura prévia.
Os pactos internacionais aprovados no país e relativos à liberdade de imprensa são incompatíveis com vários aspectos da lei.
A nova lei afeta direitos consagrados na Constituição do país, como o direito de propriedade. As licenças que essa lei desconhece ou limita foram, na sua maioria, concedidas pelas autoridades competentes e prorrogadas recentemente por 10 anos, o que a lei não respeita.
Um efeito não menos prejudicial para as grandes empresas é obrigá-las a se desfazer de suas licenças quando excederem os novos e menores limites de número de áreas de cobertura geográfica, no prazo de um ano, desde que a autoridade responsável pelo cumprimento da lei determine o regime de transição, o que implicará que durante este período haverá uma verdadeira liquidação de estações de rádio e televisão.
O prazo estabelecido para a venda das empresas que ultrapassem os limites máximos permitidos pela lei é um fator determinante para o valor do capital de trabalho. Essa situação vai exigir uma atenção especial quanto a quem poderão ser os compradores, beneficiários dessa situação, e seus vínculos ou proximidade com membros do governo.
Os radiodifusores podem explorar até dez licenças ou autorizações de comunicação audiovisual abertas ou vinte e quatro por assinatura com conexão física, desde que a sua cobertura não supere 35% do total nacional de habitantes ou assinantes do serviço, segundo o caso.
Os licenciados em cidades com mais de quinhentos mil habitantes podem perder sua licença se o Estado considerar, sem maiores explicações, que falham repetidamente em cumprir as disposições e regulamentações sobre as porcentagens de música ou produção nacional, e os grupos musicais e intérpretes estrangeiros devem ser limitados à cota disponível.
Não se previu que, com as tecnologias já disponíveis, tais como a Internet ou os telefones celulares, é possível ver ou escutar sem restrições qualquer programa em prejuízo daqueles que compõem as emissoras privadas autorizadas pelo Estado.
O processo de aplicação da lei está a cargo de uma Diretoria constituída por sete membros: dois designados pelo Poder Executivo Nacional, três pelos blocos legislativos de acordo com seu número, e os dois restantes por um conselho das províncias, o que permite prever um possível controle por parte do governo sobre os meios independentes.
As emissoras comerciais ocuparão somente a fração remanescente do espectro, dada a reserva de 33% para anúncios de entidades sem fins lucrativos e dos 67% restantes para o governo nacional, provincial ou municipal, as universidades nacionais e os povos nativos. Essa distribuição reduz o espaço para a radiodifusão privada e parece ser uma forma de controle. Além disso, não especifica como serão financiadas as emissoras estatais ou organizações sociais e permite que elas concorram ao mercado publicitário comercial como as rádios privadas, o que poderá levar a uma concorrência desleal.
Fica estabelecido o critério de que os operadores de cabo somente poderão dispor de um sinal próprio, sem distinção entre o que é o transporte (sistema de cabos) ou produção de conteúdos (canal próprio). Leis semelhantes preveem, nos Estados Unidos, por exemplo, uma produção ilimitada, mas só se pode distribuir 40% de distribuição própria.
Proprietários de rádios e de um sistema a cabo terão de abrir mão dos seus investimentos e deverão escolher apenas um dos dois.
Um canal aberto ou a cabo só pode produzir um sinal. Nos Estados Unidos, não há limites.
Grande parte dos principais meios privados do país não foram incluídos na nova lei no que se refere à propriedade, alcance nacional e ao número de licenças.
O principal prejudicado por esta situação é o grupo Clarín, empresa que edita o jornal do mesmo nome e opera um canal aberto, um sistema a cabo e sinais, todos afetados pelos limites impostos pela lei. Em meio ao trâmite, o governo tentou anular a autorização que havia sido expedida pela Comissão de Defesa da Concorrência para a fusão de suas duas empresas de cabo, Multicanal e Cablevisión.
Nesse mesmo período, a sede do grupo Clarín e a residência de alguns dos seus executivos receberam a visita de 200 inspetores da AFIP (Receita Federal argentina). O grupo interpretou o fato como uma clara intimidação oficial, e a AFIP negou ter ordenado a operação.
Esta lei foi rejeitada por quase todas as instituições que representam a mídia, jornalistas nacionais e estrangeiros. A Sociedade Interamericana de Imprensa pronunciou-se através do seu presidente, Enrique Santos Calderón, durante a sua visita ao país por ocasião da Assembleia Geral da Associação Argentina de Entidades Jornalísticas realizada na província de Salta em setembro último, e disse que o governo se transformaria em regulador parcial de toda a atividade jornalística. Santos Calderón questionou os governos surgidos democraticamente que pretendem enfraquecer os meios de comunicação, e afirmou que é preciso estar alerta para os riscos à liberdade de expressão.
O contexto em que o debate ocorreu também gerou uma alta dose de violência pelo menos verbal - e irritabilidade. Muitos cartazes foram colados pelas ruas, com palavras de ordem contra meios de comunicação, e ocorreram também outros confrontos por outros motivos.
Um deles foi denunciado por um diretor da empresa Papel Prensa, co-propriedade do Estado e dos jornais Clarín e La Nación. O funcionário disse ter sido ameaçado pelo secretário de Comércio Interior, Guillermo Moreno, o que foi interpretado pelos acionistas privados como o primeiro passo para retirar deles a propriedade da companhia produtora de papel jornal. O governo negou a possibilidade de nacionalizá-la.
O sindicato de caminhoneiros presidido pelo líder da CGTT, Hugo Moyano, um dos dirigentes ligado ao governo, impediu na madrugada da quarta-feira, 4 de novembro, a venda dos jornais La Nación e Clarín aos seus distribuidores. Depois de negociar a afiliação dos funcionários das distribuidoras ao sindicato dos caminhoneiros, autorizaram a venda por volta das 5 horas da manhã. A mesma coisa aconteceu na quinta e na sexta-feira de forma ainda mais violenta.
Não é a primeira vez que se tomam medidas contra a livre circulação dos jornais. Houve vários incidentes de conflitos com as cooperativas distribuidoras e ultimamente suas ações estenderam-se a outros jornais. A pressão contra as distribuidoras e editoras é inédita no país e é feita sem a presença de ação policial.
Esse bloqueio foi repudiado pelas associações de mídia ADEPA, ADIRA e CEMCI que o consideraram como uma medida exagerada que transforma os jornais em reféns de um conflito alheio e afirmaram que quando se interfere à força na entrega dos meios de comunicação aos cidadãos está-se afetando a liberdade de imprensa. O mesmo incidente se repetiu na quinta-feira quando a revista Noticias da Editorial Perfil foi posta à venda.
Em 7 de novembro, Dia do Jornaleiro, anunciou-se que entrava em vigor um sistema para regulamentação da venda de jornais e revistas. O ministério do Trabalho criou um registro dos pontos de distribuição, de venda em locais públicos e também decide sobre rescisões, mudanças de proprietários, anulando as margens de participação do vendedor no preço de capa. Anunciou-se também que os jornaleiros serão a partir de agora chamados de trabalhadores da cultura e estariam subordinados às editoras.
Neste ano também surgiu uma medida aguardada pelo jornalismo independente. A presidente do país enviou ao Congresso um projeto de lei que propõe a descriminalização das calúnias e injúrias cujo escopo e ambigüidade atuais restringem a liberdade de expressão dos jornalistas e meios. Esta iniciativa é o início do cumprimento de uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determinou que o país modificasse a legislação criminal. O caso que motivou essa reclamação ocorreu em 2008, quando o jornalista Kimel foi condenado por calúnia e injúria pela publicação de um livro.
Outros jornalistas como Alfredo Leuco, Rolando Graña e vários do jornal La Nación estão sendo processados por matérias contra o governo.
Continuam em vigor as restrições sobre a lei de acesso à informação pública promulgada pelo governo federal e falta uma regulamentação adequada para a distribuição da publicidade oficial, questão que também foi omitida na Lei de Serviços de Comunicação.
Outros fatos que afetaram a liberdade de imprensa na Argentina:
Em abril e maio ocorreram vários atentados contra agências e pontos de distribuição do jornal Clarín, e até agora as investigações não produziram nenhum resultado.
Desde o início do ano passado a AFIP começou a intimar jornais reclamando por uma dívida de IVA desde 2003, medida que atualmente está sendo questionada na justiça. Foram realizadas diversas gestões com o Chefe de Gabinete com o objetivo de encontrar uma solução para evitar o fechamento de muitos meios do país, mas até o momento não houve resposta. Alguns meios decidiram acolher a moratória disposta pelo governo e chegaram até a reconhecer a dívida que está sendo questionada.
Os membros do Supremo Tribunal de Justiça, Carmen Argibay e Eugenio Zaffaroni,. acusaram a imprensa de exagerar nas notícias sobre a falta de segurança, afirmando que aumenta a dimensão dos atos criminosos que divulga.
Foram freqüentes os abusos verbais durante este período e a imprensa foi acusada de agredir o governo, como resultado de decisões oficiais envolvendo grupos jornalísticos
Frente a um clima tumultuado e confrontador, oposto à tolerância e ao diálogo, o casal Kirchner acusou meios de comunicação e líderes da oposição de promover a desestabilização.
Um diretor da contra-inteligência do ex-SIDE (Serviço de Inteligência do Estado), Antonio Horacio Stiuso, moveu ação contra o diretor e o presidente do La Nación, Bartolomé Mitre e Julio Saguier por opiniões críticas à sua atuação na investigação do atentato à AMIA. Também processou jornalistas do Clarín. O Chefe de Gabinete processou judicialmente o diretor de um jornal jurídico de Quilmes, em uma clara conduta persecutória.
Numerosas rádios provinciais e municipais também sofreram agressões e atentados por seu trabalho informativo.
Durante os anos 2008 e 2009 continuaram as espionagens de jornalistas, com a intercepção de mensagens de correio eletrônico, telefones e conteúdos jornalísticos de maneira ilegal.
Em outubro, denunciou-se a transmissão, durante 17 minutos, de imagens sem autoria que pretendiam incriminar um jornalista do La Nación. Nenhuma autoridade oficial nem membros do programa explicaram as razões para o incidente, que foi atribuído a organismos da inteligência do Estado.
Em setembro, durante uma entrevista à, o expresidente Néstor Kirchner negou-se a responder a uma pergunta de um jornalista do Clarín, e disse que não se submetia ao poder monopólico do jornal e que o Clarín não é independente.
Em várias ocasiões, foram colocados cartazes nas ruas com slogans contra o canal de notícias TN e Clarín que diziam Todo Negocio, referindo-se à TN, e Clarín Miente; e a frase O que acontece Clarín? Está nervoso? foi muito utilizada.
Também em outubro foi divulgado um projeto para modificar o decreto N° 1025 que regulamenta a distribuição de jornais e revistas. A iniciativa considera os donos de quiosques e estandes de venda como "trabalhadores da cultura".
Em julho foi incendiado o equipamento de transmissão e derrubada a torre da antena da FM Satelital 95.3 na cidade de Goya, Corrientes. Não há indícios ainda dos possíveis autores do atentado, descartando-se motivo de roubo, pois nada foi retirado da emissora.
Gonzalo Rodríguez, jornalista do programa de televisão "Caiga quien Caiga", foi agredido no momento em que fazia uma reportagem sobre irregularidades no funcionamento do aeroporto de El Bolsón, em Río Negro, pelo intendente Oscar Romera.
O jornal Los Andes de Mendoza moveu ação contra distribuidores e agentes do governo de San Juan que, segundo seu entender, impediram a distribuição da revista Rumbos de 7 de julho deste ano.
Foram feitos vários ataques a diretores e executivos do Clarín, e chegou-se a distribuir uma revista totalmente dedicada a atacar o grupo Clarín e alguns dos seus principais acionistas durante um protesto organizado pelo dirigente sindical Hugo Moyano e o grupo La Cámpora.
O jornal Democracia de Junín denunciou concorrência desleal contra o jornal La Verdad que pertence ao Bispado de Mercedes Luján. A AFIP concedeu provisoriamente ao jornal do Bispado isenção de pagamento de imposto de valor agregado (IVA), pela venda de espaços publicitários, considerando que era um meio para difundir o culto religioso. Essa desigualdade não foi solucionada, apesar de afetar a igualdade perante a lei e a livre concorrência.
Madrid, Espanha