A liberdade de imprensa e expressão, marcada pela constante perseguição do governo e de outros setores contra jornalistas e meios de comunicação, vê-se agora ameaçada de ser limitada com uma norma que o presidente Evo Morales pretende adotar para educar os jornalistas a fim de que não mintam e levantem sempre o braço esquerdo com o punho fechado quando lhe fizerem uma pergunta e para que lutem contra o imperialismo.
A advertência presidencial de emitir uma norma pôs o jornalismo em estado de alerta, mas ao mesmo tempo gerou discordâncias entre as organizações jornalísticas que tentam encontrar alternativas para evitar que a liberdade de expressão seja mutilada. A Confederação Sindical de Trabalhadores da Imprensa da Bolívia (CSTPB) afirmou ter já pronto um projeto de lei de imprensa alternativo para ser examinado pela denominada Assembleia Legislativa Plurinacional. A Associação Nacional da Imprensa (ANP) e a Associação Nacional de Jornalistas da Bolívia (ANPB) rejeitam a tentativa de aprovar qualquer lei, por considerar que significaria dar luz verde para violação da liberdade de expressão.
Neste sentido, as organizações de jornalistas pactuaram a realização de debates no país para definir uma posição final. A Associação Nacional de Imprensa (ANP) nomeou e empossou em outubro de 2009 um Tribunal de Ética jornalística com o objetivo de melhorar a qualidade do jornalismo impresso e ter um organismo ao qual possam recorrer autoridades ou pessoas que se sintam lesadas por publicações jornalísticas. O Tribunal se encarregará de julgar as faltas éticas dos jornalistas e meios afiliados a esta organização, impondo sanções morais. O Tribunal é formado por um ex-presidente da Corte Suprema de Justiça, um ex-presidente do Tribunal Constitucional da Nação e três jornalistas que ganharam o Prêmio Nacional de Jornalismo.
A Associação de Jornalistas da Bolívia, a Associação Boliviana de Radiodifusão e a Associação de Jornalistas de La Paz instauraram um outro tribunal de ética para julgar as transgressões a princípios éticos de outros meios de comunicação. Ambos os tribunais obedecem à Constituição Política do Estado que na segunda parte do inciso dois de seu artigo 107 estabelece que os princípios de veracidade e responsabilidade serão exercidos mediante as normas de ética e de autorregulamentação das organizações de jornalistas e meios de comunicação e sua lei.
Desde que o presidente Morales obteve um avassalador triunfo de 64 %, sendo assim reeleito para um novo mandato de cinco anos nos comícios de 6 de dezembro de 2009, houve um alerta sobre o surgimento de autocensura em alguns meios independentes. Alguns canais de televisão reduziram seu nível informativo e, apesar de o governo não se pronunciar a respeito, sabe-se que simpatizantes do governo adquiriram alguns canais de televisão e meios impressos que se somam a um jornal, ao canal de televisão de maior alcance do país e à cadeia radial Patria Nueva, todos do governo, utilizando-os como meios de propaganda governamental.
O presidente Morales assumiu o controle total dos três poderes do Estado. Seu partido tem uma maioria de mais de dois terços no Legislativo. Foram pessoalmente nomeados pelo presidente os ministros da Corte Suprema de Justiça, do Tribunal Constitucional da Nação, do Conselho da Judicatura e o Procurador-Geral da Nação, que, por sua vez, nomeou procuradores nos nove departamentos do país, quatro deles do partido do governo.
Os jornalistas são cada vez mais convocados pelos procuradores supostamente afins ao governo, para se testemunhas em casos, especialmente com conteúdo político. Segundo a ANP, esta situação é um mecanismo de amedrontamento que pode levar os jornalistas a deixar de cobrir fatos que apresentem conflitos.
Os procuradores praticamente suspenderam as investigações sobre o incidente em que policiais atiraram contra jornalistas da Rede Unitel de Televisão, em 3 de setembro de 2009, e da PAT de Televisão, em 26 de novembro, ambos na cidade de Santa Cruz de la Sierra.
Em 3 de setembro de 2009 o jornalista Alberto Ruth e o cameraman Francisco Cuéllar, da Unitel, foram agredidos por policiais da Unidade Tática de Resolução de Crises (Utarc) quando cobriam a prisão de um cidadão envolvido em um conflito de terras com camponeses partidários do governo.
Os repórteres foram agredidos, a caminhonete policial investiu contra seu veículo, sua filmadora foi destruída a tiros e o filme foi confiscado. O governo admitiu no dia seguinte que policiais sob comando do capitão Walter Andrade haviam participado do ataque, dissolveu esse corpo policial de elite que havia participado de outras ações sangrentas de cunho político e disse que suspendeu os envolvidos para submetê-los a um processo interno. Até o momento, os agressores não foram punidos, apesar de terem sido identificados.
Em 26 de novembro, também em Santa Cruz, duas mulheres jornalistas da rede televisiva PAT foram perseguidas, retiradas do automóvel em que estavam, arrastadas pelos cabelos por vários metros por policiais do grupo Delta, que dispararam suas armas, ferindo na perna Ismael Jesús Montero, motorista do veículo das jornalistas, que foi também alvo dos disparos. As jornalistas Shirley Flores e Karen Paola Rueda faziam uma matéria sobre o sequestro de um menor. O Ministério do Interior anunciou que abriria inquérito para tomar medidas punitivas internas ou desligamento dos responsáveis, mas se desconhece se foi adotada alguma medida.
Em 25 de janeiro, ao anunciar a criação de uma lei para educar os jornalistas, o presidente Morales afirmou desejar que o jornalistas e meios de comunicação participem desta tarefa de luta contra o capitalismo.
O caso do jornalista Carlos Quispe, assassinado em 29 de março de 2008 por um grupo de manifestantes , contrários ao prefeito da cidade de Pucarani, continua envolto em mistério. A Procuradoria da cidade El Alto de La Paz, onde tramita o caso, assim como a Polícia, paralisaram suas investigações e nenhuma autoridade tomou medidas para reabri-las.
A este panorama acrescenta-se o fato de o presidente ter rompido uma virtual trégua que parecia existir e retomou seus sistemáticos ataques aos jornalistas. Desde novembro de 2009, foram registradas 21 agressões ou críticas verbais contra jornalistas. Seis delas, ou seja, mais de 25%, foram feitas pelo presidente Evo Morales.
A última agressão verbal se registrou em 3 de março quando ele ameaçou a jornalista Nicole Bisbal, da Rede Unitel, dizendo que ele próprio fará com que sua declaração seja publicada textualmente. A
senhora entendeu? Escutou bem?, falou, diante das câmaras de televisão.
Por meio da Assembleia Legislativa o governo aprovou uma Lei Anticorrupção que permite investigar o enriquecimento ilícito de ex-funcionários do Estado, e outra de Julgamentos de Responsabilidades para ex-presidentes e chefes de Estado que tenham cometido delitos administrativos.
Essas lei são questionadas por analistas jurídicos e opositores que consideram que elas violam os direitos porque desconhecem, entre outras coisas, a suposição de inocência até que se prove a culpabilidade, e que vão ser usadas apenas como instrumentos de vingança política.
Apesar dessas e outras normas que, segundo o governo, servem para gerar transparência da administração pública, foram emitidos decretos que fecham as portas ao acesso à informação pública, negando-se aos cidadãos e aos jornalistas a possibilidade de investigar sobre os bens e receitas das autoridades detalhadamente, a menos que exista uma ordem judicial, dentro de um processo justificado.
As Forças Armadas se escudaram em seus regulamentos internos para negar informação solicitada com ordem judicial, sobre assassinatos, desaparecimentos e torturas cometidos por regimes ditatoriais.
Em abril de 2009, o governo atual emitiu um Decreto Supremo por meio do qual estende aos órgãos Legislativo e Judiciário a obrigação de exercitar o acesso à informação que, por um Decreto Supremo de 2005, aplicava-se unicamente ao poder Executivo. No entanto, na prática, poucas instituições cumprem as obrigações porque não existe uma instância coercitiva para os casos de não cumprimento.
Enquanto isso, um projeto de Lei de Acesso à Informação, elaborado há quatro anos pela atual Ministra de Transparência, dorme em alguma gaveta da Câmara de Deputados, apesar de ter sido postado no web site desse ministério.
Outros fatos importantes neste período:
Em 9 de novembro, um grupo de pessoas deficientes que reivindica um bônus por inatividade ao governo atacou as instalações da rádio estatal Patria Nueva, ameaçou os jornalistas com agressões e cortou os fios de eletricidade, obrigando o meio a suspender sua emissão por duas horas, denunciou a jornalista Jenny Abiza.
Em 10 de novembro, o presidente Morales pediu à SIP para educar alguns jornalistas da Bolívia para que o respeitem, em resposta ao pedido para que parasse de insultar e agredir verbalmente os repórteres. A SIP disse que Evo respeite os jornalistas, mas eu quero dizer à SIP que como organização ela eduque alguns jornalistas para que me respeitem, disse, durante um evento na cidade de Potosi. Se não respeitam o presidente, como vão respeitar o povo boliviano?, perguntou. Queremos que a imprensa diga a verdade, só a verdade (...). Essa é uma batalha internacional que tem que ser empreendida.
Em 27 de novembro, a jornalista Paola Mallea, da rede televisiva PAT, foi ferida com uma faca quando saía de casa. O fato ocorreu menos de 24 horas depois de uma equipe de televisão do mesmo canal ter sido baleada por um grupo policial de elite, motivo pelo qual o meio de comunicação afetado apresentou denúncias e pediu que o governo lhe desse garantias para trabalhar. A jornalista denunciou, dias depois, que também tinha sofrido um sequestro relâmpago, abordada por dois homens.
Em 2 de dezembro, o presidente Morales sugeriu a possibilidade de fazer greve de fome para libertar os jornalistas que são instrumentos da direita. Posso conseguir trabalho para todos, assim todos podem vir trabalhar e não estar a serviço da direita para fazer mal à Bolívia, à pátria, aos bolivianos e também à vida, afirmou.
Em 18 de dezembro, o diretor do jornal governista Cambio, Ramiro Ramírez Simons, foi agredido na cidade de La Paz por um grupo de desconhecidos, quando voltava para casa. Por causa dos golpes recebidos, Ramírez teve fratura tripla do septo nasal e uma possível ruptura de mandíbula.
Em 10 de janeiro, Juan Manuel Arias, porta-voz do empresário de Santa Cruz de la Sierra, Branko Marinkovic, acusou o jornal La Razón de fazer uma perseguição a seu chefe, porque o jornal queria conhecer o paradeiro de Marinkovic, denunciou o meio afetado.
Em 12 de janeiro, a Prefeitura de Sucre (sul da Bolívia) emitiu uma circular na qual advertia autoridades intermediárias de que não estão autorizadas a emitir declarações públicas em meios de comunicação sem autorização prévia.
Em 25 de janeiro, o presidente Morales anunciou que seu governo vai criar normas para os meios de comunicação para que não mintam e pediu aos jornalistas que participem da luta contra o capitalismo. Morales disse que há meios de comunicação cujos comentaristas o chamam de índio, animal ou macaco, e que inclusive sugerem que é necessário matá-lo, e advertiu que há que começar a corrigir e normatizar para que a nossa referência sejam as leis.
Em 28 de janeiro, o presidente da Câmara dos Deputados da Bolívia, Héctor Arce (do MAS, partido governante), negou-se a atender o pedido de meios de comunicação televisivos e ordenou a redução do espaço destinado aos jornalistas que cobrem o Congresso.
Em 23 de fevereiro, Óscar Sandy, diretor executivo de Insumos Bolívia - instituição subordinada ao Ministério de Desenvolvimento Produtivo e Economia Plural -, anunciou que moverá ação contra Carmen Melgar, jornalista da rede de TV Unitel, pelos delitos de difamação e injúria por ter afirmado que nos depósitos da Insumos Bolívia havia farinha com data de validade vencida.
Em 3 de março, o presidente Morales repreendeu duas jornalistas durante uma coletiva no Palácio de Governo. A uma delas exigiu que publicasse textualmente o que dizia e anunciou que verificará se há liberdade de expressão. E chamou a segunda de porta-voz de alguns companheiros e compatriotas que permanecem com resto do neoliberalismo depois que ela lhe fez uma pergunta.
Nicole Bisbal, da rede Unitel, lhe perguntou: Presidente, que opinião o senhor tem dos Estados Unidos e do Fundo Monetário Internacional e sua relação com a Bolívia?. Morales respondeu: Veja, os Estados Unidos e o FMI permitem tudo... desculpe, de que meio é a senhora?. A repórter lhe respondeu e o presidente prosseguiu: Unitel, quero que a senhora publique textualmente o que eu disser, vou verificar se há liberdade de expressão, entendido? A senhora escutou bem?
Em 7 de março, um juiz da cidade de La Paz, Álvaro Melgarejo, confiscou momentaneamente o gravador do jornalista do diário La Razón, Miguel Melendres, durante uma audiência cautelar contra três ex-funcionários do Serviço Nacional de Aduanas acusados de compras irregulares, denunciou o repórter agredido.
Em 9 de março, o chanceler David Choquehuanca aborreceu-se durante uma coletiva quando lhe perguntaram quando o governo boliviano entregaria o dinheiro arrecadado na campanha Chile e Haiti necessitam de ti, perguntando aos comunicadores com quanto haviam contribuído para essa atividade solidária. Pergunto-lhes se o pessoal de imprensa se solidarizou. Vocês perguntam quanto exatamente e eu lhes pergunto com quanto contribuíram, exigiu Choquehuanca aos jornalistas.
Madrid, Espanha