Argentina

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Este ano será lembrado como um dos mais complexos e tensos para os meios de comunicação. Os setores oficiais do país não respeitaram a tarefa da mídia, de informar o público e analisar as notícias, e questionaram sua credibilidade. Foram constantes os confrontos entre o governo e alguns meios, e esses conflitos definiram o cenário de atuação da mídia na Argentina de hoje. As notícias, informações e opiniões filtradas pela intolerância e pelo confronto se avolumaram e inundaram a vida cotidiana. Os episódios foram ganhando dimensão gradativamente, e um exemplo foi a aplicação da lei dos meios de comunicação, promulgada em 2009, e a proibição oficial para a Fibertel de fornecer serviços de internet como parte da Cablevisión. Houve também a disputa pela Papel Prensa, fábrica que tem importância estratégica para os jornais. Esse panorama tornou-se ainda mais sombrio com as ameaças de prisão contra Bartolomé Mitre, diretor do La Nación, e Héctor Magneto, do Clarín, por supostos delitos, inicialmente qualificados pelo governo como crimes de lesa humanidade, na aquisição das ações da Papel Prensa. Por último, e para coroar um ano difícil para a mídia, tivemos o projeto de lei aprovado por cinco comissões da Câmara dos Deputados declarando de interesse público a produção e comercialização do papel para jornais. A lei dos meios de comunicação, promulgada em 2009, propõe uma reformulação dos conteúdos e das licenças para rádio e televisão. Vários artigos da lei foram questionados judicialmente por diversos jornais e associações de consumidores e canais de TV que os consideraram abusivos e inconstitucionais. Depois de passar por várias instâncias nos tribunais, a lei já está sendo aplicada quase que integralmente, enquanto ainda se formaliza sua aplicação adequada, e se dispôs, por decreto, sua regulamentação. O capítulo mais polêmico, porém, foi o da propriedade das licenças. O artigo 161 da nova lei prevê um prazo de um ano para que os proprietários façam o desinvestimento, ou seja, vendam as licenças que ultrapassem o número máximo permitido pela lei. Esse artigo foi questionado judicialmente pelo Grupo Clarín e outros, alegando inconstitucionalidade, e pediu medida cautelar para evitar que transcorresse o período estabelecido pela lei. A medida cautelar foi aceita pelo juiz em primeira e segunda instâncias e, por último, pela Corte Suprema de Justiça, mas a ação, como um todo, ainda está sendo examinada. A decisão acolheu o protesto contra a postura mantida pelo governo, que era colocar a lei em vigor o quanto antes. A decisão da Corte manteve a suspensão do artigo, mas pediu rapidez no processo que avalia a questão na sua totalidade. Antes que se conhecesse a decisão do tribunal superior, organizações partidárias ao governo realizaram um ato político em frente ao prédio do tribunal com o objetivo de pressioná-lo. Foi ali que Hebe de Bonafini, presidente da organização “Mães da Praça de Maio”, convocou o povo a “tomar de assalto” o tribunal, uma ameaça que não foi suficientemente repudiada pelo governo. A convocação foi amplamente divulgada. Nesse período houve também a suspensão da licença de operações da Fibertel, de propriedade do Grupo Clarín. O episódio foi interpretado como um novo capítulo na luta travada pelo governo com essa empresa. O incidente ocorreu quando a Secretaria de Comunicações recusou-se a autorizar a licença para a Fibertel alegando que a provedora de serviços de internet havia sido absorvida pela empresa Cablevisión, também do Grupo Clarín, e que essa fusão não havia sido autorizada. O Grupo Clarín respondeu dizendo que essa licença está plenamente vigente e é reconhecida pelo Estado e que se tratava de um novo impulso no controle da liberdade de expressão. De todos os modos, a medida está suspensa por decisão do juiz em favor dos direitos do consumidor. Ficou frustrada também a tentativa do governo de modificar a ordem dos canais nas listagens das TVs a cabo, que substituiria a ordem atual por uma que seria mais conveniente para as estações que são de propriedade de grupos próximos ao governo. O papel jornal também foi motivo de conflito. Como insumo básico para a imprensa e decisivo para questões de liberdade de imprensa e de expressão, seu controle é altamente estratégico. O governo reiterou sua intenção de questionar na justiça a venda da empresa Papel Prensa, do grupo Graiver a um consórcio formado pelos jornais, Clarín, La Nación e La Razón, em novembro de 1976. Em cadeia nacional, a presidente Cristina Fernández de Kirchner apresentou um relatório sobre o que considerou ser uma apropriação da empresa pelos três jornais, com o apoio da ditadura militar da época. Disse que Lidia Papaleo, viúva de David Graiver, morto meses antes em um suspeito acidente de avião no México, estava em “liberdade ambulatória” quando assinou a transferência das ações, e iniciou uma investigação dos diretores dos jornais naquela época por crimes supostamente cometidos naquela compra de ações. Os jornais acusados desmentiram a versão da presidente e afirmaram que a operação de venda havia sido consequência de uma decisão do grupo Graiver que passava por dificuldades financeiras depois da morte de David Graiver e depois de a empresa ser investigada por manipular fundos da organização subversiva Montoneros, fruto de sequestros extorsivos. Ofereceram como documentos e depoimentos, entre eles o de Isidoro Graiver, irmão de David, que garantiu que não houve pressões nem torturas, mas sim necessidade de liquidez financeira. Teve início, nesse momento, uma verdadeira batalha sobre fatos que ocorreram 34 anos antes, e uma batalha incentivada pela participação violenta do Secretário de Comércio Interior nas reuniões da diretoria da Papel Prensa. Isso impactou a opinião pública e provocou reações diversas em associações e partidos políticos. O Estado detém 27% do capital acionário desta empresa. A essa acusação, a presidente acrescentou, durante seu discurso na TV, o anúncio de um projeto de lei no Congresso para declarar de interesse público a fabricação, comercialização e distribuição do papel jornal. Quase simultaneamente, outro projeto semelhante, apresentado por outro partido político, foi aprovado em um plenário de cinco comissões da Câmara dos Deputados e passou para exame na Câmara. Se o projeto se transformasse em lei, seria uma ingerência direta do governo na produção de papel. Incluiria a criação de uma comissão do governo para controlar a venda do papel, um registro oficial de circulação de jornais, e seriam proibidos também de ser acionistas de uma empresa produtora de papel, como a Papel Prensa, os meios gráficos, nacionais ou estrangeiros, que possuíssem mais de 10% das ações das suas empresas de meios de comunicação. As reações ao anúncio foram imediatas. O presidente da SIP, Alejandro Aguirre, disse que é lamentável que se recorra a métodos antigos de usar o papel jornal como mecanismos de pressão e para calar indiretamente as vozes críticas e independentes. A Asociación de Entidades Periodísticas Argentinas (ADEPA) comentou que os projetos de lei violam a proibição de promulgar leis que restrinjam a liberdade de imprensa ou estabeleçam jurisdição federal sobre ela. Argumentou que “em termos lógicos, a proposta do governo está marcada por uma contradição insuperável. Ao colocar das mãos do Estado mecanismos de controle implícito como fornecedor de papel para os meios gráficos, invertem-se as funções próprias da institucionalidade republicana”. A ADEPA alega que os meios de comunicação contam, atualmente, com um fluxo de abastecimento de papel nacional e importado que garante o seu funcionamento. Vários membros da Asociación de Diarios del Interior de la República Argentina (ADIRA) participaram das audiências públicas para contar a realidade da sua situação e como foram afetados pela dinâmica das forças no mercado do papel ao longo da sua história. A ADIRA lembrou a criação, há 40 anos, por meio do decreto lei 18.312/70, do Fundo para o Desenvolvimento da Produção do Papel Jornal e Celulose, para o qual os jornais do interior contribuíram, em 10 anos, com cerca de 70 milhões de dólares “sabendo que planta à qual esse dinheiro se destinava iria abastecê-los satisfatoriamente... Mas esse não foi o caso”, concluiu, “e apesar de terem feito um esforço imenso, os jornais do interior sempre careceram de capacidade de decisão”. A entidade afirmou “que qualquer iniciativa que garanta o pluralismo em todo o nosso território está acima de qualquer crítica” e pediu que um representante dos meios do interior congregados na ADIRA participe da distribuição do papel da empresa. Sua posição se refere apenas à distribuição do papel, mas não aceitam a participação do Estado na produção nem na administração da empresa Papel Prensa. A ADIRA também se pronunciou sobre o que considera fundamental: evitar as cotas e os impostos sobre a importação do papel. Houve também nesse período um aumento dos fundos destinados à publicidade oficial que chegou a um valor recorde. Um dos motivos foi o programa Futebol para Todos, no qual o governo investe 600 milhões de pesos, para transmissão das partidas, e mais outros 300 milhões para a produção dos eventos. Nesse cenário, continua sendo motivo de grande preocupação o crescimento de grupos de meios de comunicação vinculados ao governo e que recebem assistência por meio da publicidade oficial. O surgimento do Twitter como ferramenta de comunicação em todo o mundo trouxe uma mudança para os paradigmas da circulação de informações e opiniões. Mas no país, em vez de trazer vantagens para o trabalho da imprensa, transformou-se em um canal para aumentar as divergências. Membros do alto escalão do governo criaram contas oficiais nesses sites e possuem até estruturas de comunicação para gerenciá-los, mas não usam linguagem adequada a seus cargos, envolvendo-se em discussões laterais, ou utilizam tons muito aquém dos que deveriam utilizar, considerando-se as posições que ocupam no governo. Porém, os meios de comunicação não deixaram de lado sua missão de defender a liberdade de expressão e de promover a criação de um ambiente que propicie o desenvolvimento harmonioso de uma sociedade em conflito e sua convivência com a imprensa independente.

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