Uruguai

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A liberdade de imprensa e o livre exercício do jornalismo foram, em geral, a tônica do último semestre, embora alguns anúncios de integrantes da Frente Ampla no governo e certa confusão quanto à posição real do presidente José Mujica em relação a estes temas tenham contribuído para gerar um ambiente de incerteza sobre o rumo que o governo irá tomar. O presidente Mujica declarou sem rodeios que “não há lei de imprensa melhor que a que não existe”, porém logo após receber críticas da Frente Ampla, advertiu que falou isso de “brincadeira”. Outro dia, reconheceu a “nobre tarefa” atribuída à imprensa em uma democracia, mas depois afirmou que a imprensa é “um mal”, apesar de “necessário”. Enquanto a Diretoria Nacional de Telecomunicações (Dinatel) avança na elaboração de uma nova “lei da mídia” para regular as atividades das emissoras de rádio e televisão, os operadores privados começaram a exibir sinais de preocupação pela possibilidade eventual deste projeto normativo afetar a liberdade de expressão. O vice-presidente da República, Danilo Astori, admitiu ter “muito medo” de qualquer regulamentação nesta questão. Governantes e parlamentares partidários do governo protagonizaram ataques verbais isolados contra diversos meios de imprensa neste período. Em termos judiciais, os Tribunais de Recursos determinaram a revogação de uma sentença de primeira instância contra um jornalista adotando a nova legislação vigente no país que respeita a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, assim como o encerramento de uma demanda civil milionária contra um meio de comunicação, apresentada por um ex-senador do partido do governo com o propósito de provocar seu encerramento por estrangulamento econômico. Ao mesmo tempo, em sentença insólita, uma promotora do ministério público requisitou a apreensão de todos os exemplares de um livro que um jornalista publicou por entender que contém frase ofensiva à honra de ex-parlamentar partidário do governo. De um modo geral, o Estado teve uma conduta correta no manejo de recursos públicos em relação à imprensa, apesar dos protestos ocorridos em um caso onde a empresa estatal de eletricidade beneficiou ilegalmente durante três anos um grupo de mídia partidário do governo em detrimento de todos os demais. O direito dos cidadãos de acessar informações públicas, obrigação legal do Estado desde 2008, continua sendo precário, por mais que o Poder Executivo force a Suprema Corte de Justiça, que considerava “confidenciais” todos os trâmites judiciais, a liberar informações sobre o que fazem os juízes. Em 20 de março, o sequestro de um empresário e a posterior cobertura jornalística deste fato pela imprensa causou uma polêmica entre o governo e os meios de comunicação e jornalistas. Os sequestradores mantiveram o empresário Ignacio Rospide em cativeiro e exigiram dois milhões de dólares à sua família pelo seu resgate. Após 36 horas, sabendo-se cercados pela polícia, os sequestradores liberaram Rospide são e salvo, sem receber nenhum centavo. Porém, enquanto ocorria o sequestro e os familiares e policiais negociavam com os sequestradores, um canal de TV divulgou a identidade do empresário e forneceu informações sobre o que estava ocorrendo. Outros meios de comunicação repetiram imediatamente a notícia. Isto enfureceu o ministro do Interior, Eduardo Bonomi, que qualificou como “irresponsabilidade” a divulgação da notícia porque - segundo ele - colocou em risco a vida do empresário. Gerardo Sotelo, um repórter de rádio, manteve no ar uma polêmica com o ministro, lembrando que o dever dos jornalistas é disseminar informações em vez de aceitar o silêncio ou deixar que circulem boatos. Logo após esta discussão em público, o Ministério do Interior convocou os diretores de toda a mídia, pediu um “prazo de sigilo nas informações”, enquanto se desenvolviam as operações policiais e sugeriu a elaboração de um protocolo entre o governo e a imprensa para lidar com este tipo de casos extremos. A discussão gerou painéis de debates com especialistas em comunicação. Em 3 de maio, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) aprovou um acordo entre o jornalista Carlos Dogliani e o Estado, encerrando um caso que provocou modificações substanciais a favor da liberdade de expressão na legislação uruguaia. Dogliani foi condenado a cinco meses de prisão com suspensão, após escrever em março e abril de 2004 dois artículos criticando a administração do prefeito de Paysandú (380 km a noroeste de Montevidéu). O prefeito Álvaro Lamas propôs uma ação judicial por “difamação” e “injúrias” contra Dogliani. Após passar por diversas instâncias judiciais, Dogliani foi condenado a cinco meses de prisão (com suspensão) em agosto de 2006 pela Suprema Corte de Justiça, que lhe imputou os delitos mencionados. Em fevereiro de 2007, Dogliani apresentou uma denúncia contra o Estado perante a CIDH por violação da sua liberdade de expressão. A CIDH acolheu o processo e encaminhou a petição ao Estado. Mas o governo do então presidente Tabaré Vázquez disse que estava disposto a chegar a uma “solução amistosa” para evitar uma condenação pela Corte Interamericana. Então, uma Comissão promovida por entidades da sociedade civil, integrada também por delegados do governo, começou a trabalhar em um projeto para mudar dispositivos da lei uruguaia que criminalizavam o exercício do jornalismo no país. Após intensas negociações, o Poder Executivo promulgou em junho de 2009 uma lei que modificou a antiga “lei de imprensa”, eliminando as penas por delitos de “difamação” e “injúria”, anulando um delito que autorizava a penalização de jornalistas que “atentaram contra a honra” de um chefe de Estado estrangeiro, limitando à sua mínima expressão o delito de “desacato” contra funcionários públicos, introduzindo a doutrina da “malícia real” em julgamentos contra jornalistas e ordenando aos juízes a seguirem a jurisprudência da Corte Interamericana nesta matéria. Em 29 de maio, o presidente Mujica declarou durante um congresso de empresários agropecuários que na imprensa uruguaia “há uma fábrica de notícias”, inserindo aí especificamente informações publicadas nos diários El País e El Observador, que haviam se baseado em expressões do próprio chefe de Estado. “Vamos nos divertir um pouco com esta situação”, o presidente convidou os ruralistas, antes de lançar suas críticas contra a imprensa. Dois dias depois, o diário governista La República atacou os demais meios de comunicação em um editorial e exigiu do governo a imposição de limites para o exercício do jornalismo livre. Em 15 de junho, o chefe da Diretoria Nacional de Telecomunicações (Dinatel), Gustavo Gómez, anunciou que o governo promoverá um debate público para modificar a lei de radiodifusão, advertindo também que a iniciativa “não tem como objetivo regulamentar os conteúdos dos meios de comunicação”. Gómez anunciou duas leis: uma sobre mídia audiovisual e outra sobre telecomunicações. No decorrer do semestre, a elaboração do projeto de lei de rádio e televisão (conhecida como “lei da mídia”) levantou protestos cada vez maiores nas rádios e emissoras privadas de TV, que advertiram contra a possibilidade do Estado usar a nova norma para pressioná-los com concessões ou revogações de licenças, controles e sanções. Por outro lado, já existe outro projeto apresentado ao Parlamento durante a administração anterior de Tabaré Vázquez, que determinaria a intervenção do Estado nos conteúdos da mídia audiovisual, obrigando-os a manter percentuais definidos de programação de origem nacional. Em 23 de outubro, o diário Ultimas Notícias divulgou um documento do Movimento de Participação Popular (MPP, partido liderado pelo presidente Mujica até sua eleição em 2009) que está no governo, no qual se propõe como modelo da “lei da mídia” a que foi aprovada pelo governo de Cristina Fernández na Argentina. Segundo este documento, que será discutido durante um congresso do MPP previsto para dezembro, a “lei da mídia” argentina “alcançou o objetivo, apesar dos poderosos que manipulavam tudo com total impunidade”. O dossiê convoca o governo a se preparar para um confronto com “lobbies muito importantes” e “gente sem escrúpulos capaz de tudo para continuar detendo esta grande parcela do poder decorrente da posse e utilização impune da mídia”. Em 1º de julho, o Partido Comunista do Uruguai (PCU) acusou o semanário Búsqueda de incorrer em “subterfúgio” e “fabricação” de uma suposta tentativa destinada a isolar esta força política “para que todos saiam lhe atacando”. O periódico tinha divulgado um documento interno do PCU, um dos partidos que integram o governo do presidente Mujica, onde este partido criticou duramente a orientação econômica da atual administração e onde seu secretário geral, o senador Eduardo Lorier, reclamou por uma política econômica “alternativa”. Os questionamentos ao semanário Búsqueda surgiram depois que os principais dirigentes comunistas tiveram reuniões com o presidente Mujica, o vice-presidente Danilo Astori e o ministro da Economia, Fernando Lorenzo. Em 2 de julho, pela primeira vez um Tribunal de Recursos revogou uma sentença de primeira instância contra um jornalista pelo delito de “difamação”, apelando para a doutrina de “malícia real”, incorporada ao direito positivo uruguaio em junho de 2009. A sentença do Tribunal deixou sem efeito uma condenação em primeira instância que punia com cinco meses de prisão (com suspensão) o jornalista Ricardo Morales, diretor do semanário Três Puntos publicado em Paysandú (380 km a noroeste de Montevidéu). Em janeiro de 2009, Três Puntos informou a prisão de dois policiais logo após tentarem entrar no Uruguai com um carregamento de cocaína procedente da Argentina e mencionou ainda o subcomissário Ricardo Coelho como vinculado à iniciativa. Coelho propôs uma ação contra o periódico pelo delito de “difamação” e, em março de 2010, a juíza local Blanca Riero condenou o jornalista Morales. Mas o Tribunal revogou a sentença da juíza Riero advertindo que, de acordo com a nova legislação sobre liberdade de expressão vigente no Uruguai, “o potencial de dano das declarações públicas contra um funcionário público pelos atos de sua função, em si, não poderá restringir a liberdade de imprensa; esta liberdade não existirá se a imprensa ficar inibida de publicar notícias que afetem a honra do funcionário público”. Em 22 de julho, o semanário Búsqueda divulgou um “dossiê reservado” preparado em 2008 pelo encarregado anterior do setor de imprensa no Ministério de Gado, Agricultura e Pesca (MGAP), Juan Angel Fernández, com o objetivo de orientar “o trato diário” com a imprensa pelas chefias deste ministério. O relatório classificou como “confiáveis” ou “não confiáveis” 21 meios de comunicação e 34 jornalistas de todo o país e aconselhou as autoridades ministeriais sobre aqueles para quem deveriam dar ou não informações. Correlacionou também o “espírito crítico” de alguns meios de comunicação com a “recusa” do Ministério em contratar publicidade oficial com os mesmos e informou sobre os antecedentes político-ideológicos de diversos profissionais, ao estilo dos antigos dossiês que eram frequentes na ditadura militar (1973-1985). Fernández, que exercia o cargo de diretor de Comunicações Institucionais do MGAP, deixou o documento para sua sucessora no Ministério, a chefe da Assessoria de Comunicações, Lucía Giambruno Sánchez. Em 2 de agosto, uma promotora de medidas penais reivindicou em uma sentença a apreensão de todos os exemplares de um livro escrito por um jornalista sobre o papel do Partido Comunista do Uruguai durante a ditadura militar (1973/1985). A promotora, Ana María Tellechea, solicitou ao juiz Rolando Vomero que ordenasse o sequestro de todos os exemplares do livro “Secretos del Partido Comunista”, do jornalista Álvaro Alfonso, porque entendeu que a sua venda implica “a contínua perpetuação do delito”. A promotora pediu uma pena de 24 meses de prisão em regime aberto (excarcelable) para o repórter, acusando-o do delito de “difamação” por considerar que ele agiu “com malícia injustificada” após escrever na sua obra que Carlos Tutzó, um ex-parlamentar comunista de Montevidéu, “colaborou” com os militares durante a ditadura. O jornalista baseou este dado em fontes militares e, ao consultar fontes comunistas, recebeu informações de que nesse partido “existem dúvidas” sobre a conduta de Tutzó. A promotora solicitou ao juiz Vomero que “ordene a apreensão de todos os livros publicados que contenham a alegação difamatória”. Em 4 de agosto, a Embaixada do Equador questionou o diário El País de Montevidéu, porque o mesmo criticou em um editorial a lei de comunicação promovida pelo regime do presidente Rafael Correa. O encarregado de negócios do Equador, René Fernández, disse que o editorial do periódico uruguaio “prejudicou a imagem do governo equatoriano” e negou que o governo de Correa promova a escolaridade obrigatória para a profissão, que o Poder Executivo controle o Conselho de Comunicação e Informações criado na lei e que preveja algum tipo de censura prévia. El País respondeu que a escolaridade profissional faz parte do projeto, ratificou que o governo controlaria o Conselho e disse que a lei estabelece a proibição da censura “salvo nos casos estabelecidos na Constituição e na lei”, o que significa que “poderia haver o caso de alguma lei que exija a censura prévia”. Em 13 de agosto, uma investigação divulgada pelo semanário Brecha em que se expôs a suposta intervenção do ex-secretário da Presidência, Gonzalo Fernández, em uma manobra para revogar uma lei que punia um grupo de banqueiros uruguaios acusados de cometer delitos durante a crise financeira de 2002, iniciou uma tempestade política e uma chuva de acusações contra este meio de comunicações e outros que, logo em seguida, fizeram suas próprias coberturas sobre um assunto tão perigoso. Fernández, antigo homem forte do governo do presidente Tabaré Vázquez (2005-2010), sua esposa — também envolvida na suposta manobra—, integrantes da Frente Ampla governista e o diário La República partidário do governo atacaram a Brecha e o resto da imprensa apontando-os como participantes de um “complô político”, além de outros insultos. O caso está sob investigação tanto do Parlamento como do Poder Judiciário. Em 26 de agosto, a primeira-dama e primeira senadora do governo, Lucía Topolansky, disse que a Frente Ampla governista “precisa ter logo um meio de comunicação” próprio. Em 30 de agosto, a empresa estatal de eletricidade UTE assinou com o grupo de empresas de comunicação pró-governista de propriedade do empresário argentino Federico Fasano um convênio para quitação dentro de 60 meses das dívidas que tem há mais de três anos à empresa estatal no valor aproximado de 350.000 dólares. A estatal incluiu entre as formas de pagamento possíveis a quitação de parte da dívida com publicidade contratada pela própria UTE com o diário La República, a rádio “AM Livre” e o canal de televisão por assinatura “TV Livre”. Parlamentares do governo e da oposição manifestaram seu desacordo com a decisão da empresa estatal, que em 11 de junho dera entrada a uma medida de retenção judicial contra este grupo empresarial. Durante o governo do presidente Tabaré Vázquez (2005-2010), o “Grupo La República” funcionou como porta-voz extraoficial dos governistas. Nos anos em que não pagou suas dívidas à UTE, a estatal além de não cobrar o que devia, comprou também de Fasano espaços para publicidade oficial para anunciar nas páginas do diário e nas emissoras de rádio e TV. Em 9 de setembro, um Tribunal de Recursos em processos civis determinou o arquivamento definitivo de uma ação apresentada em maio de 2009 contra o semanário Búsqueda pelo ex-senador da Frente Ampla governista, Leonardo Nicolini. O ex-parlamentar foi obrigado a renunciar a seu mandato na Câmara Alta por seus companheiros de partido após Búsqueda informar em 2006 que usou um “carnê de pobre” para ser operado por um preço barato em um hospital público. Em 2008, Nicolini declarou publicamente que pretendia propor uma ação civil contra o periódico com o objetivo explícito de “fechá-lo”. O ex-senador deu entrada na ação em maio de 2009, alegando danos à sua honra, porém, mais de um ano depois o Tribunal arquivou o caso, advertindo que “não parece razoável que estando em jogo a honra individual e demais direitos da pessoa” Nicolini tivesse esperado “quatro anos para reclamar um indenização”. Em 27 de setembro, o presidente Mujica declarou à revista brasileira Veja que “a melhor lei de imprensa é a que não existe”. No final de setembro, o governo resolveu obrigar o Poder Judiciário a informar, mediante pedido de qualquer pessoa ou instituição, sobre os processos judiciais em tramitação ou arquivados. A decisão foi incluída em um parecer da estatal Unidade de Acesso às Informações Públicas (UIAP), após denúncia da organização não governamental Centro de Arquivos e Acesso às Informações Públicas (Cainfo), que havia fracassado em petição apresentada à Suprema Corte de Justiça nesse sentido. A Corte respondeu que a tramitação dos processos e a identificação das partes nos julgamentos são informações “confidenciais”. Mas a UIAP determinou que o Poder Judiciário “está sujeito ao cumprimento das obrigações” de transparência da lei de direito de acesso às informações públicas, aprovada durante a administração do presidente Tabaré Vázquez (2005-2010). Em 15 de outubro, o governador do departamento de Canelones (46 km ao norte de Montevidéu), Marcos Carámbula, acusou o diário El País de embarcar “em uma campanha sistemática para desestabilizar” seu governo. A reação de Carámbula, da Frente Ampla governista, foi em resposta a informações publicadas por El País e outros meios de comunicação de que o governo desse departamento foi forçado a renunciar à coordenação de um projeto de integração regional financiado pela Agência Espanhola de Cooperação Internacional para Desenvolvimento (AECID), assim que esta entidade pediu a justificativa dos gastos de uma verba de 760.000 euros. Em 18 de outubro, o vice-presidente da República, Danilo Astori, ratificou sua posição contrária à regulamentação dos conteúdos da imprensa. Enquanto isso, o senador Francisco Gallinal (do Partido Nacional, na oposição) qualificou como “uma barbaridade” o projeto da Secretaria de Imprensa da Presidência da República de produzir programas de rádio e televisão para difusão pela mídia privada. Em 26 de outubro, um relatório da Cainfo, uma ONG dedicada à transparência no acesso nas informações públicas, revelou que metade dos órgãos do Estado ainda não informa aos cidadãos sobre os vencimentos e remunerações, execução do orçamento aprovado e auditorias realizadas no seu caixa, descumprindo a lei de acesso às informações públicas aprovada em 2008.

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