Argentina

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Este está sendo um ano turbulento para a liberdade de imprensa. Refletir sobre a administração do governo e analisá-la de forma independente e crítica tornou-se uma tarefa repleta de obstáculos e riscos. Como nos três anos anteriores, o governo utiliza recursos e órgãos públicos para premiar ou castigar os meios de acordo com sua linha editorial. Criou-se um imenso aparato midiático semi-oficial que se dedica a desacreditar o jornalismo independente, e houve um aumento das agressões e restrições contra aqueles que tentam questionar um governo que pretende estabelecer sua própria versão dos fatos, deixando de lado enfoques alternativos. Paralelamente, o governo avança com leis e intromissões abusivas no controle dos conteúdos, insumos e licenças para a mídia. A publicidade oficial aumentou bastante desde 2003 e sua distribuição desvirtuou seu objetivo. Em vez de ser utilizada para informar sobre a atuação do governo, por meio dos canais mais adequados para que a mensagem chegue aos cidadãos, transformou-se em combustível para os meios de comunicação alinhados ao governo ou hostis com a imprensa que não o seja. Esse uso negligente e arbitrário dos fundos públicos torna-se evidente no exame das porcentagens de distribuição da publicidade oficial. Nos primeiros seis meses deste ano, 48% da publicidade oficial destinada aos jornais da cidade de Buenos Aires foi o dobro em comparação com o mesmo período do ano anterior, e se concentrou em dois grupos editoriais próximos ao governo. Os dois jornais de maior circulação e os quais, juntos, representam mais de 60% da circulação total da capital, receberam 2,5% contra os 38% que foram destinados aos dois jornais com uma tiragem combinada dez vezes menor que a deles. Entre os jornais do interior, um grupo de jornais pró-governo recebeu 44% da publicidade oficial para esse setor. No segmento das revistas, 59% foram para três publicações de baixa tiragem, enquanto a mais vendida não recebeu sequer um tostão. A publicidade oficial na televisão aberta cresceu em 282% no primeiro semestre deste ano em comparação com o mesmo semestre de 2010; 48% foram destinados ao terceiro canal mais assistido contra 0,5% que recebeu o de maior audiência. Entre as rádios, uma estação AM pró-governo foi beneficiada com 41% dos fundos distribuídos nesse segmento contra 2% recebidos pela segunda maior em audiência. Em março passado, a Corte Suprema da Argentina, por meio de uma decisão em um caso de discriminação publicitária movida pela editorial Perfil, estabeleceu que a publicidade oficial não pode ser distribuída de forma discriminatória nem ser usada como um modo indireto para afetar a liberdade de expressão. O governo, burlando nitidamente a justiça e desconsiderando o equilíbrio republicano, limitou-se a publicar um artigo com calúnias em um jornal que pertence à Perfil, e continuou distribuindo a publicidade oficial segundo seus próprios critérios. Além da discriminação na distribuição da publicidade oficial, o governo usa de forma abusiva diversos canais para transmitir sua mensagem, desde o uso de meios de comunicação públicos até órgãos proselitistas para o uso propagandístico das transmissões de jogos de futebol, que foram estatizadas, regadas de anúncios do governo e mantidas com fundos superiores a 2 bilhões de pesos. A isso deve-se acrescentar a distribuição feita pela agência de notícias do governo de conteúdo gratuito para mais de 7.000 meios, e cujo diretor declarou pertencer a uma variante militante ou partidária do jornalismo. Vários órgãos que atuam na órbita do Poder Executivo engajaram-se em políticas de perseguição aos que tentaram divulgar dados diferentes dos oficiais. O Ministério do Comércio Interior, baseando-se em uma interpretação forçada de uma disposição legal e em clara agressão à liberdade de expressão, penalizou com multas altas as consultoras privadas que divulgavam os índices de inflação. No caso de uma denúncia formal apresentada pelo Ministro do Comércio contra uma dessas consultoras, um juiz ordenou que diferentes meios de comunicação identificassem os jornalistas que nos últimos cinco anos escreveram artigos sobre índices de inflação diferentes das daqueles do órgão oficial das estatísticas. Esse pedido constitui uma evidente pressão de intimidação sobre esses jornalistas e meios e um risco de censura indireta. Outros órgãos, como a Comissão Nacional de Comunicações ou a Receita Federal, tomaram medidas que configuram perseguição contra a mídia e jornalistas. As agressões verbais feitas por funcionários públicos alimentam um clima opressivo para o exercício do jornalismo. Entre as inúmeras ofensas ou provocações dirigidas aos meios e aos jornalistas, cabe mencionar, a título de exemplo, as do ministro do Interior, Florencio Randazzo, que acusou os jornais Clarín e La Nación de ameaçarem a democracia, ou as observações de Gabriel Mariotto, candidato a vice-governador da província de Buenos Aires, que afirmou que os derrotados nas eleições primárias foram os responsáveis pelos editoriais dos grandes jornais. No interior do país também houve incidentes que afetaram o diálogo, como as declarações de caráter calunioso do governador da província de Salta, Juan Manuel Urtubey, contra o jornal El Tribuno. Esse clima de hostilidade, que se espalha por todo o país, foi um terreno fértil para a proliferação de campanhas de difamação montadas pelos meios pró-governo através de cartazes colocados nas vias públicas. Durante 2011 alternaram-se confrontos extraordinários e grosseiros e sofisticadas e perigosas agressões à imprensa. Em março e abril, exemplares dos jornais Clarín, Olé, La Voz del interior e Día a día não puderam chegar aos seus leitores, e as autoridades não tomaram nenhuma medida a respeito. Hoje, a possibilidade de exercer o jornalismo com independência esbarra nas tentativas de regulamentação do governo sobre o papel jornal e os conteúdos do jornal, na concessão de licenças e o estabelecimento de sanções no setor de audiovisuais. Um projeto de lei do Executivo que propõe declarar de interesse público a produção, comercialização e distribuição de papel jornal pode se transformar em lei no final desse ano, quando o governo e blocos legislativos aliados tiverem maioria nas câmaras legislativas. A iniciativa, que proíbe que os jornais participem da produção do seu principal material, obrigaria os atuais acionistas majoritários da única fábrica que produz o papel atualmente no país a abandonarem a empresa. A possibilidade de o governo controlar os materiais essenciais dos meios gráficos, através da produção local e das regulamentações do comercio exterior, colocaria em risco qualquer possível autonomia da imprensa. Em meados de agosto passado, Gabriel Mariotto, diretor do órgão de aplicação da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, de maioria pró-governo, reclamou publicamente a um juiz que decidira sobre um dos artigos da lei, cuja aplicação está suspensa por ser considerada prima facie inconstitucional por afetar retroativamente os direitos de quem possui licenças legalmente concedidas. A “lei da mídia” que concede ao governo uma ampla intervenção que afeta o pluralismo informativo ao promover a conformação de um conglomerado de meios oficiais e não oficiais, tem sido aplicada de forma seletiva. Nota-se menos controle na intervenção do órgão de aplicação sobre os meios de comunicação próximos ao governo. Entre outras medidas relacionadas ao papel da imprensa, o governo federal emitiu um decreto que proíbe os anúncios que promovem a oferta sexual. O jornal Río Negro entrou com recurso de amparo por considerar que o decreto é inconstitucional porque se baseia em duas leis que têm como único objetivo evitar e castigar o tráfico de pessoas e a prostituição forçada, mas não impedem o exercício livre e voluntário a prostituição e, portanto, sua publicidade. Isso a transforma em medida lesiva à liberdade de expressão, o que obrigou o jornal Río Negro a mover uma ação de ameaça que foi recusada em primeira instância não por seu conteúdo, mas pela via utilizada. O Río Negro apelou da decisão. O segundo recurso é contra a resolução da Secretaria de Comunicação Pública que estabelece novas sanções com a retirada da publicidade oficial dos meios que publiquem avisos de oferta sexual. A primeira resolução determinava multas importantes e o confisco da publicação, o que implica punição dobrada para uma mesma ocorrência. Existem no país meios de comunicação que podem criticar a gestão dos governantes. Mas as liberdades de expressão e de imprensa estão limitadas por uma série de agressões sistemáticas aos meios de comunicação através dos quais essas liberdades podem se concretizar. A combinação do temor às represálias, a sedução dos fundos públicos e o crescimento de poderes discricionários do governo nas regulamentações tingiu grande parte do mapa midiático com um tom pró-governo. Com eleições presidenciais no horizonte próximo e as quais, de acordo com as pesquisas, criarão um governo forte com maioria legislativa e uma oposição diluída, haverá fracos contrapesos institucionais para conter os excessos do poder. Nesse cenário, a redução progressiva das vozes jornalísticas independentes emite um sinal de alerta quanto à vitalidade da democracia.

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