A palavra afiada, Sergio Ramírez

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Discurso de abertura da Assembleia Geral da SIP

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DISCURSO DE ABERTURA DA ASSEMBLEIA GERAL DA SIP

A PALAVRA AFIADA

Sergio Ramírez

Sr. Jorge Canahuati, presidente DA SIP

Sra. Gabriela Cañas, presidente da agência EFE

Sr. Ricardo Trotti, diretor executivo da SIP

Sr. Danilo Arbilla

Antes de mais nada, gostaria de agradecer por essa honra que é, para mim, dirigir-lhes essas palavras na abertura da 77ª Assembleia Geral da Sociedade Interamericana de Imprensa, instituição com uma longa história de defesa da liberdade de expressão.

Como sou, antes de tudo, um contador de histórias, gostaria de começar recordando algo que aconteceu muito tempo atrás na Nicarágua. Quando a ditadura de Somoza agonizava, embora ele acreditasse que duraria para sempre, e era isso que as pessoas que o cercavam o faziam acreditar, como acontece sempre nas ditaduras, ele mandou calar toda a mídia independente porque, como todos os ditadores, acreditava que era melhor reinar em silêncio do que deixar que as vozes que o perturbavam fossem ouvidas.

O ano era 1978. Submetido ao bombardeio de tanques e ao ataque militar, com suas prensas destruídas, o jornal La Prensa deixou de circular. No início daquele ano, em 10 de janeiro, seu editor, Pedro Joaquín Chamorro Cardenal, havia sido morto por pistoleiros da ditadura enquanto dirigia seu carro, sozinho, numa rua deserta, entre as ruínas deixadas pelo terremoto que havia destruído Manágua poucos dias antes.

Os noticiários de rádio, sujeitos a censura primeiro, também foram encerrados. Então, os jornalistas inventaram uma forma de chegar até o povo, para que soubessem o que a ditadura de Somoza não queria que soubessem. A crueldade da repressão, os jovens que apareciam mortos a cada manhã em lugares próximos à capital, os ataques noturnos às casas, os prisioneiros, os desaparecimentos, as "operações de limpeza".

E essa forma que eles encontraram foi transmitir as notícias dentro das igrejas. Do altar-mor, às vezes sem luz elétrica e à luz de velas, os locutores liam os boletins enquanto as pessoas se aglomeravam na nave para ouvir. Esse jornalismo foi então chamado de jornalismo das catacumbas.

Na Nicarágua, a história tem um mecanismo vicioso que faz com que ela se repita. É uma anomalia fatal que ainda não foi corrigida. Uma ditadura provoca uma revolução para derrubar um ditador, e essa revolução cria um novo ditador que, por sua vez, inicia um novo ciclo de opressão. Somoza engendra Ortega, e o ditador, ofendido pela palavra livre, fecha e ocupa os meios de comunicação, prende os jornalistas ou os força ao exílio. É a história mordendo a própria cauda.

O jornal La Prensa foi obrigado mais uma vez a parar suas prensas, primeiro por falta de papel, retido na alfândega, e depois porque suas instalações foram ocupadas pela polícia. Seu diretor, Juan Lorenzo Hollman, está preso, sem assistência médica, e corre risco de perder a vista.

Cristiana Chamorro Barrios está presa, assim como Pedro Joaquín Chamorro Barrios, jornalistas e diretores do La Prensa, e o terceiro dos irmãos, Carlos Fernando Chamorro Barrios, diretor do jornal Confidencial fugiu por caminhos clandestinos para livrar-se da ordem de prisão. Foi seu pai assassinado que disse que a Nicarágua voltaria a ser uma república, não um sultanato, mas uma república.

Está preso pela segunda vez o jornalista e fundador do canal 100% Noticias, Miguel Mora, depois que as instalações do canal foram ocupadas pela polícia em 2018, e ilegalmente confiscadas. Está preso o jornalista Miguel Mendoza.

Todos esses jornalistas estão entre os 150 prisioneiros políticos, sete deles candidatos à presidência, e líderes políticos, de organizações cívicas e direitos humanos, líderes estudantis e de camponeses, empresários, banqueiros; sem julgamento ou submetidos a julgamentos forjados, sem o devido processo, sem direito a defesa, sem advogados nem assistência médica, e em condições desumanas. Todos eles acusados dos mesmos crimes, pré-fabricados em série, que vão desde lavagem de dinheiro até terrorismo, e atos contra a soberania nacional.

Em primeiro lugar e diante de vocês, peço que não nos esqueçamos desses prisioneiros. Que mantenhamos vivo o fato de que estão presos numa prisão sinistra, dentro da grande prisão em que a ditadura de Ortega transformou a Nicarágua. Que mantenhamos em mente que sua causa é justa e necessária para a defesa da democracia.

Dezenas de jornalistas da mídia impressa, de rádio e televisão, assim como Carlos Fernando Chamorro, tiveram de fugir cruzando fronteiras. E, mais uma vez, temos o jornalismo das catacumbas, só que agora não mais nas igrejas, com as notícias lidas à luz de elas. Esse jornalismo das catacumbas é feito por meio das redes sociais. Na clandestinidade, dentro da Nicarágua, ou do exílio, com a ajuda de correspondentes anônimos, os jornalistas informam o povo através de transmissões no YouTube, no Facebook Live, em podasts ou blogposts.

Carlos Fernando Chamorro transmite, de fora da Nicarágua, seus programas de TV "Esta Semana" e "Esta Noche". O 100% Noticias continua informando. O jornal La Prensa mantém sua edição digital, mantida pelos seus jornalistas dentro e fora do país. E dezenas de outros sites estão abertos e seus jornalistas investigam e denunciam os atos de repressão, os abusos, dão voz aos familiares dos prisioneiros políticos, falam da corrupção. Revelam o que a ditadura quer que fique escondido e contradizem o discurso oficial e as notícias oficiais em seus vários canais de rádio e televisão.

Como nunca, o jornalismo das catacumbas é dono da palavra que a ditadura não pode tirar da boca daqueles que, em meio às dificuldades do exílio ou aos riscos da clandestinidade, defendem a liberdade de expressão e o direito de informar.

A ditadura quer um país imobilizado por meio do medo e do silêncio enquanto prepara uma farsa eleitoral sem a menor legitimidade; mas a palavra livre transmitida pelas redes, capaz de alcançar a todos com um telefone celular na mão, vai contra esse projeto. Nunca antes a palavra teve tanto peso quanto agora, e no sombrio panorama em que vive a Nicarágua, com suas instituições pervertidas, o estado de direito em ruínas, a perseguição policial desatada, é a palavra que nos salva. A palavra livre que ressoa das catacumbas. A palavra em resistência.

Sei que o caso da Nicarágua não é o único em que a repressão começa com a ordem policial de impor o silêncio. É disso que estamos falando quando falamos de estados policiais. Outros países padecem do mesmo, basta citar a Venezuela ou Cuba. Mas a rebelião começa sempre pelas palavras, e são as palavras a fiel companheira na luta pela democracia.

Falo diante de vocês não como um político, porque deixei de ser político há muito tempo, mas como um escritor comprometido com as palavras, que sempre são afiadas. É a palavra afiada que as ditaduras temem, sejam de esquerda ou direita. Nos dois casos os métodos de repressão são os mesmos, e o discurso repressivo é o mesmo; o que muda é o disfarce ideológico, a retórica. Mas até a retórica se assemelha, a começar pelo fato de que é uma retórica ultrapassada.

Sou um escritor no exílio, e meus livros estão proibidos dentro da Nicarágua, e sou perseguido pelos mesmos crimes inventados arbitrariamente para tantos que lutam pela democracia e que estão na prisão, tanto mulheres como homens. E a minha contribuição para a luta pela democracia na Nicarágua, e na América Latina, continuará sendo as palavras.

Quando um regime que procura permanecer no poder indefinidamente, a qualquer custo, censura não só os jornalistas e persegue não só aqueles que informam, mas também um romancista; e manda reter na alfândega seus livros, assim como mandou reter o papel com que se imprimia o jornal La Prensa, esse regime, no final das contas, tem medo.

Hoje, na América Latina, a batalha é entre a ditadura e a democracia. Os regimes que pretendem permanecer no poder para sempre e que, portanto, procuram anular a vontade do povo, falsificando eleições, silenciando a mídia, e que subjugam todos os poderes do Estado sob um só punho, anulando sua independência, são uma anomalia da história em pleno século XXI.

Negociar com suas armadilhas, aceitar legitimá-los, tomar como normal a anormalidade que representam, esquecê-los, aceitar os resultados de suas eleições fictícias, acreditar em suas falsas aberturas e em suas negociações mentirosas, através das quais só procuram se sustentar, isso é tornar-se seu cúmplice.

É para enfrentar a anormalidade, para contradizer a realidade paralela que eles procuram nos impor, é para isso que a palavra livre existe e que a mídia livre existe. A palavra que não faz acordos, que não cede, que não vacila. Para isso ela nos foi dada, tanto àqueles que investigam o oculto por meio de seu trabalho como jornalistas, e o publicam, quaisquer que sejam os riscos, quanto àqueles entre nós que procuram criar mundos diferentes por meio da criação literária, sem esquecer que os romances são baseados na realidade, e são apenas um reflexo dessa realidade, tingida pela anormalidade criada pelo poder vicioso, que se ergue sempre contra a liberdade e a dignidade dos seres humanos.

As palavras são as mesmas em ambos os casos, as que usa o jornalista e as que usa o romancista. Mas, no final, serão temidas pelas tiranias, desde que sejam palavras afiadas.

Muito obrigado.

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