Carlos Jornet - Liberdade de Imprensa

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Discurso de abertura para discussões sobre liberdade de imprensa
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Presidente da Comissão de Liberdade de Imprensa e Informação
Carlos Jornet, A Voz do Interior, Argentina
77ª Assembleia Geral da SIP
Lee Hills Sessions
Quarta-feira, 20 de outubro de 2021 - 11:30

Muito obrigado, senhor presidente. Bom dia a quem ainda não cumprimentou.

A persistência da crise de saúde em muitos de nossos países obrigou-nos mais uma vez a ser prudentes, a nos reunirmos de novo remotamente, embora tivéssemos gostado de nos encontrar de novo. E espero que isso aconteça em breve.

Infelizmente, quando a pandemia terminar, quando Covid-19 for uma memória ou pelo menos uma doença mais controlável e menos mortal, alguns arrependimentos terão se estabelecido com mais força em nosso continente.

Algumas dessas feridas que se espalharão, que doerão mais intensamente, serão censura, impulsos autoritários, intolerância.

Os desertos informativos também terão crescido.

Conforme afirmou o presidente Jorge Canahuati, comunidades sem a mídia local para representá-las terão se multiplicado de uma ponta à outra de nossa América. E haverá um terreno mais fértil para o crescimento da desinformação e do discurso de ódio, para a germinação da corrupção e do crime organizado.

Esse cenário de perda de sustentabilidade para centenas de mídias é acentuado pela crescente competição de plataformas globais, que usam o conteúdo da mesma mídia para obter mais de 80% da publicidade digital global.

Já em abril passado, dissemos que a sombra de um cisne negro, com um impacto de consequências talvez irreversíveis para muitas publicações, pairava sobre a imprensa escrita; em certa medida, sobre o jornalismo como um todo e, portanto, sobre a liberdade de expressão.

Estávamos longe de imaginar que, pouco tempo depois, o regime de Daniel Ortega e sua esposa Rosario Murillo, na Nicarágua, desencadearia uma verdadeira caçada para silenciar todas as vozes críticas.

E que em Cuba haveria outra onda repressiva como única resposta para conter os protestos massivos contra o regime comunista e pela reivindicação de liberdade.
Ambas as realidades foram expostas de forma dura e contundente nos relatórios finais de duas missões que realizamos a estes dois países de forma virtual, devido à crise da saúde, mas basicamente para contornar o bloqueio que ambos os governos impõem para que não transcendam a ultrajes que cometem contra as liberdades dos cidadãos e os direitos humanos.

O escritor e humorista espanhol Jaume Perich disse que "graças à liberdade de expressão, hoje já é possível dizer que um governante é inútil sem que nada nos aconteça. Nem para o governante ".

Como toda piada, contém parte da verdade, mas também inclui uma reviravolta que parte da tensão da realidade para nos levar a refletir.

É verdade, a tecnologia abre novas possibilidades para a liberdade de expressão todos os dias. E também para que possamos denunciar a opressão nos aproximando da realidade, ainda que remotamente.

É claro que em muitas regiões da América não é possível dizer que um governante é inútil sem pagar duramente as consequências. Os colegas nicaraguenses e cubanos sabem disso muito bem; os artistas; defensores dos direitos civis; padres comprometidos; os intelectuais.

Ditadores, autocratas e também líderes com um verniz democrático, repetidamente encontram formas de exercer a censura, de limitar o acesso às ferramentas que permitem aos cidadãos levantarem a sua voz contra os abusos de quem os governa.

Tentemos, então, reformular aquela frase que, para além das intenções humorísticas, expõe a tragédia que existe em termos de liberdade de expressão e de imprensa. Assim, poderíamos dizer: "Graças à liberdade de expressão, em muitos países da América é possível dizer que um governante é inútil, que nada lhe acontecerá. Mas, mais cedo ou mais tarde, não poderá impedir que triunfe a reivindicação de liberdade, que prevaleça a verdade, que venha à tona os abusos de poder ".

É mais do que evidente que o propósito de toda ação autoritária é silenciar a oposição, prolongar um status quo que se traduz em uma eternização dos governos despóticos no poder.

Mas quando a chama da liberdade é acesa, quando as pessoas assumem essa reivindicação como uma prioridade, essa onda é imparável.

Como símbolo dessa luta, a SIP entregará na quinta-feira o Grande Prêmio da Liberdade de Imprensa a dois dos vice-presidentes regionais desta Comissão, Juan Lorenzo Hollmann Chamorro e Henry Constantin Ferreiro.

Eles representam a tenacidade para enfrentar o poder despótico.
Eles - e muitos outros colegas perseguidos, entre os quais o número de mulheres cresce proporcionalmente - refletem a decisão de tantos nicaragüenses e cubanos de não se renderem ao ultraje.

A mesma mensagem foi dada pelo Comitê norueguês há algumas semanas, quando concedeu o Prêmio Nobel da Paz aos colegas María Ressa e Dimitri Muratov. Não são os primeiros jornalistas a receber o Prêmio Nobel da Paz, mas é a primeira vez que o prêmio é concedido pela defesa da liberdade de expressão, "uma condição prévia para a democracia e a paz duradoura", como diz a resolução.

O presidente da comissão disse que Ressa e Muratov "representam todos os jornalistas que defendem este ideal num mundo em que a democracia e a liberdade de imprensa enfrentam condições cada vez mais adversas".

Esse ambiente sufocante para o exercício da atividade é cada vez mais agravado por discursos conflituosos, desqualificadores, que promovem a violência contra jornalistas.
Outros nove comunicadores morreram em decorrência de eventos violentos nos últimos seis meses nas Américas: seis no México e um, respectivamente, no Brasil, Colômbia e Haiti.

Assim, o número de assassinados no exercício de sua atividade sobe para 17 nos últimos 12 meses.

Uma das preocupações da SIP, e tema central do trabalho de nossa Subcomissão de Impunidade, é evitar que a morte de cada jornalista caia no esquecimento, por deficiências na investigação ou insuficiente empenho judicial.

Por isso, neste semestre realizamos negociações com representantes de governos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e com familiares de jornalistas assassinados, exigindo justiça, mas também para promover efetivas políticas públicas de proteção ao jornalista. E, sobretudo, para que os Estados possam fazer uma indenização moral e financeira aos familiares das vítimas.

Um marco nesse trabalho em conjunto com a Corte Interamericana de Direitos Humanos é a recente condenação do Estado colombiano pelos atos de tortura, sequestro e estupro da jornalista Jineth Bedoya, atualmente editora do El Tiempo, ocorridos em 2000 quando ela realizou um projeto de pesquisa no presídio Modelo, em Bogotá.

A decisão apenas questiona duramente a violação dos direitos da vítima às garantias judiciais, a ausência de proteção judicial e igualdade perante a lei devido à falta de devida diligência na condução das investigações sobre os referidos fatos, o caráter discriminatório de gênero das razões das investigações e o violação do prazo razoável.

Também alerta para "evidências sérias, precisas e consistentes da participação do Estado nos eventos mencionados".

Em relação à escalada repressiva contra a imprensa que atualmente está sendo registrada, um fato extremamente representativo da ação ou cumplicidade estatal em alguns países é que nestes seis meses 20 jornalistas independentes em Cuba e 37 colegas e líderes pagaram por seus oponentes de reivindicação de liberdade na Nicarágua.

No momento eles estão presos:

No Brasil, o blogueiro Paulo Cezar de Andrade Prado.

Em Cuba, dois jornalistas independentes Lázaro Yuri Valle Roca e Esteban Rodríguez e youtuber Yoandi Montiel, enquanto as colegas Mary Karla Ares e Camila Acosta permanecem em prisão domiciliar.

Na Nicarágua, nosso vice-presidente regional Juan Lorenzo Holmann Chamorro, e também Miguel Mendoza. E dois outros membros da diretoria do La Prensa, Cristiana Chamorro e seu irmão Joaquín Chamorro, ela está em prisão domiciliar por ser pré-candidata a presidente, e ele porque previu que ela seria pré-candidata.

Quando analisamos os relatórios país a país, que já podem ser consultados em nosso site, verificamos a existência de assustadoras restrições ao acesso à informação pública em praticamente todos os países; aumento das agressões no contexto de protestos sociais; discriminação na distribuição de propaganda oficial, aumento de ações judiciais contra jornalistas e um condicionamento crescente à independência dos poderes judiciários.

Somente na Nicarágua registramos 57 intimações judiciais a jornalistas. Mas também houve casos na Argentina, Brasil, Estados Unidos, Guatemala, Panamá, Paraguai e Cuba.

Os casos mais extremos contra os meios de comunicação, conforme mencionou nosso presidente em seu discurso de posse, foram a apreensão e desapropriação das instalações do El Nacional, na Venezuela, poucos dias após nossa reunião semestral, e uma ação semelhante ordenada pelo regime de Daniel Ortega contra La Prensa, na Nicarágua.

No primeiro caso, o objetivo era executar a sentença de saqueio que condenou a mídia a pagar o equivalente a 13 milhões de dólares a Diosdado Cabello. Quanto ao La Prensa, não se esperava que uma decisão judicial firme atacasse a mídia e tentasse silenciá-la, o que não aconteceu devido à tenacidade de seus dirigentes e funcionários.

Ameaças, ataques e outros eventos violentos ocorreram no Brasil, Colômbia, Equador, El Salvador, Estados Unidos, Guatemala, Haiti, México, Nicarágua, Peru e Venezuela.

É difícil precisar quantos jornalistas tiveram que se exilar nos últimos seis meses, mas os dados que se conhecem falam de pelo menos 26 na Nicarágua e dois em Cuba, enquanto dois repórteres estrangeiros foram expulsos pelo governo de El Salvador.

A estigmatização do Estado - em geral, o prelúdio de ataques mais graves contra a imprensa - registra casos recorrentes na Argentina, Brasil, El Salvador, México e Peru.
E sem dúvida o tema mais repetido nos relatórios que recebemos para esta assembleia são as restrições ao acesso à informação.

Apesar da gravidade da crise sanitária e econômica desencadeada pela pandemia, as limitações do trabalho jornalístico cresceram em praticamente todo o continente, e com maior frequência e intensidade em Antígua e Barbuda, Bolívia, Canadá, Chile, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Estados Unidos, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Porto Rico e Trinidad Tobago.

Como podemos ver, a falta de transparência ocorre em países com governos de ambos os signos ideológicos; governos autoritários e também de nações com maior tradição democrática; em alguns casos devido à força dos fatos, em outros devido a avanços legislativos ou judiciais. Por exemplo, na Bolívia, onde um projeto de lei prevê a eliminação do sigilo jornalístico e outro restringe o acesso à informação.

A tendência de regular o fluxo de informações pela internet é outra ameaça que paira sobre a região. Pois com a desculpa de evitar a disseminação da desinformação, e sob títulos grandiloquentes, são apresentados projetos que acabam limitando a liberdade.

É o caso, por exemplo, do Canadá, com um projeto de lei contra o ódio que cria monitores de "segurança digital"; no Chile, com textos em debate na nova Assembleia Constituinte; na Colômbia, com projetos de regulação de redes sociais e conteúdos na infância e adolescência; em Cuba, com o Decreto-Lei 35; em El Salvador, com iniciativas regulatórias do regime de Bukele; na Venezuela, onde o governo bloqueia regularmente os sites da mídia independente na Internet.

Todas essas duras realidades se refletirão, como antecipamos, na edição de 2021 do Índice de Chapultepec, que apresentaremos esta tarde. Essa será uma foto atualizada do cenário vivido pela imprensa no ano passado.

Mas há muito tempo tentamos ter ferramentas que nos permitam ver em tempo real o que está acontecendo em cada país do continente. Já temos em estágio avançado de desenvolvimento um monitor que, utilizando tecnologia de inteligência artificial, mostrará em painel interativo os ataques à imprensa, a estigmatização do governo e os desvios autoritários que estão surgindo. Este projeto, que chamamos de SIP Bot, será lançado formalmente em novembro próximo, mas hoje contaremos com mais detalhes em que consistirá.

Outra iniciativa que lançaremos a partir de hoje é uma versão em vídeo da Declaração de Salta sobre os Princípios da Liberdade de Expressão na Era Digital. Elaborado em linguagem simples, busca transmitir às novas gerações os conceitos deste documento aprovado pela SIP em 2018.

Sugiro que primeiro vejamos a versão completa, que tem pouco mais de dois minutos e meio de duração, e depois dois atalhos feitos para as redes sociais, um com legenda em inglês e outro em português, para atingir todo o continente.

Para encerrar, gostaria de salientar que, apesar do contexto preocupante que descrevi acima, nosso discurso não desanima. É um apelo à ação, para redobrar os esforços para mudar essa realidade. E é isso que apontam as iniciativas que acabamos de apresentar.
Para que quando a tempestade passar, quando a humanidade retornar ao caminho do desenvolvimento, o sol da liberdade de expressão volte a brilhar e encontremos os caminhos que garantem a sustentabilidade do jornalismo profissional.

E vamos conseguir isso nos países onde reina o obscurantismo, uma imprensa sólida e vigorosa pode em breve ser desenvolvida para ajudar a expandir o debate cidadão.

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