Carlos Jornet
Presidente da Comissão de Liberdade de Imprensa e Informação
19 de abril de 2022
Reunião de Meio de Ano da SIP
Estamos encerrando um semestre sombrio para o jornalismo das Américas, repleto de ações e acontecimentos sinistros e contrários à liberdade de expressão e imprensa. Este período, somado ao semestre anterior que começou em abril de 2021, abarca um ano com número recorde de jornalistas assassinados, presos, condenados e forçados ao exílio, e com veículos de comunicação de longa trajetória invadidos e expropriados por governos autoritários que carecem de qualquer institucionalidade.
Tudo isso, por sua vez, acontece em um contexto extremamente adverso, que dificulta a sustentabilidade das empresas.
O mundo vive o que parece ser os últimos suspiros da pandemia que nos afeta há dois longos anos. E quando estávamos começando a nos recuperar desse tsunami, a invasão da Ucrânia pela Rússia desencadeou uma tragédia humanitária no coração da Europa.
Permitam-me ler um parágrafo sobre o conflito que nos mantém preocupados e que diz o seguinte:
"Unidades especiais russas invadiram a Ucrânia e ocuparam instalações-chave. O governo russo e o próprio presidente Putin negaram repetidamente que sejam tropas russas e as descreveram como 'grupos de autodefesa' espontâneos que poderiam ter adquirido equipamentos de aparência russa em lojas locais. Quando deram essa ridícula declaração, Putin e seus assistentes sabiam muito bem que estavam mentindo."
E continua:
"Os nacionalistas russos podem desculpar esta mentira alegando que serviu a uma verdade superior. A Rússia está envolvida numa guerra justa, e se não há nenhum problema em matar por uma causa justa, não é óbvio que mentir também não é problema? A causa superior que em teoria justifica a invasão da Ucrânia é a preservação da sacrossanta nação russa".
O texto foi escrito pelo historiador israelense Yuval Harari e é um trecho de seu livro 21 Lições para o século 21. Como vocês já devem ter notado - porque este livro foi publicado em 2018 - Harari não está falando da guerra atual, mas da invasão da península da Crimeia em 2014.
Por que menciono isso hoje? Porque Putin aplicou o mesmo modelo para fazer essa investida de agora contra a Ucrânia. E aquele "episódio" da Crimeia, que não provocou grandes reações da comunidade internacional, foi então o prelúdio do drama que nos aflige hoje.
O próprio Harari lembra as queixas ucranianas de que Putin tinha conseguido enganar muitos meios de comunicação ocidentais sobre as ações na Crimeia e em Donbas. E adverte, no livro:
"Vivemos em uma terrível era pós-verdade, quando não apenas incidentes particulares, mas histórias e nações inteiras podem ser falsificadas". (...) Por trás de todas as notícias falsas existem fatos reais e um sofrimento verdadeiro (...) Milhares de pessoas realmente morreram".
Felizmente, os Estados Unidos não enfrentam situações de guerra como as da Ucrânia há décadas. Mas padecem de outras "guerras". "Guerras" que também começaram com "incidentes menores" e depois se intensificaram.
Refiro-me às investidas que governos de origem democrática, mas com forte tendência autoritária, desencadearam contra os direitos dos cidadãos, contra a liberdade e contra a vida de pessoas inocentes. Em alguns casos, também em nome de verdades supostamente superiores, de uma causa justa.
A isso se somam as atividades do narcotráfico e outras formas de crime organizado, que se aproveitam da incompetência do governo, quando não de sua cumplicidade, para tentar (e muitas vezes conseguir) impor sua lei em vastos territórios.
Nestas "invasões" contra a institucionalidade, contra os direitos humanos essenciais, os jornalistas e a mídia estão geralmente entre as primeiras vítimas, como ocorre também na Ucrânia, onde pelo menos oito colegas já foram mortos enquanto realizavam seu trabalho.
A gravidade do que está acontecendo em nosso continente fica evidente quando vemos que até agora, este ano, o México tem o mesmo número de jornalistas mortos que um país devastado pela guerra: oito, apenas um a menos do que em todo o ano de 2021.
E desde nossa assembleia de outubro, 10 jornalistas foram mortos por ataques naquele país, e 15 no total, se contarmos os três mortos no Haiti, um na Guatemala e outro em Honduras. Se fizermos o cálculo desde abril de 2021, em 12 meses foram assassinados 24 jornalistas no continente, 16 deles no México.
Trata-se apenas de uma falha dos sistemas de proteção dos jornalistas? As deficiências dos mecanismos de segurança para a imprensa implementados pelo governo do México, da Colômbia, do Brasil e Honduras, são evidentes, como veremos mais adiante.
Mas essa não é a única razão para este aumento da violência. Há uma clara irresponsabilidade pela qual muitos líderes e funcionários do governo evitam assumir a responsabilidade. Em 4 de fevereiro, em carta ao presidente Andrés Manuel López Obrador, advertimos que "quando se enfrenta o jornalismo como estratégia política, abre-se a porta para os violentos, para os intolerantes".
E acrescentamos: "Denegrir a imprensa do topo do poder não é um jogo dialético, uma esgrima verbal sem consequências. E menos ainda em momentos difíceis, como os que o México vive".
Infelizmente, nosso pedido de comedimento, e um pedido quase simultâneo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, assim como as medidas posteriores do Parlamento Europeu e outros órgãos e entidades internacionais, só mereceram o descrédito de López Obrador.
O presidente continua a estigmatizar os jornalistas e a mídia e a zombar deles. Ele parece desconhecer que as agressões à imprensa aumentaram 85% desde que tomou posse, de acordo com um relatório da organização Artículo 19. O mesmo relatório estimou que em 2021 o presidente e seus funcionários difamaram a imprensa pelo menos 71 vezes.
Portanto, desta tribuna, dizemos mais uma vez: presidente López Obrador, encare a gravidade do momento. Suspenda todo discurso estigmatizante contra a mídia e os repórteres. Se você não puder deter a violência, pelo menos não a encoraje.
As agressões e ataques aos jornalistas e à mídia se multiplicaram nos últimos tempos em países das três Américas. Em geral, isto está relacionado com discursos políticos que desqualificam a imprensa e que promovem confrontos.
Chefes de Estado da região ou líderes próximos a eles recorrem frequentemente a esta prática, numa tentativa de desacreditar de antemão investigações ou denúncias publicadas pela mídia. Isto é acompanhado por assédio judicial ou administrativo, ameaças de cancelamento de publicidade oficial para mídia crítica ao governo e restrições de acesso à informação pública e para a cobertura jornalística.
O presidente salvadorenho Nayib Bukele levou a escalada de ataques à imprensa independente a um patamar superior. Seu governo aprovou várias leis para restringir o trabalho dos jornalistas, e os abusos, agressões, ameaças e expressões hostis contra a mídia e os comunicadores só fazem aumentar.
E o que dizer do regime venezuelano liderado por Nicolás Maduro? Os ataques sistemáticos e a perseguição contra o jornalismo independente culminaram com a apreensão das instalações do jornal El Nacional pelas Forças Armadas. Isso foi feito com base em uma sentença absurda e ilegal por suposta difamação, em uma ação movida por Diosdado Cabello, um dos expoentes do chavismo.
A Venezuela atinge assim um triste recorde de mais de 120 veículos de comunicação que desapareceram ou que teriam sobrevivido apenas com versões digitais sob o regime de Maduro, devido à asfixia a que foram submetidos.
Mas não há dúvida de que a mais grave perseguição administrativa e judicial dos últimos seis meses ocorreu na Nicarágua.
Não há mais espaço para atitudes tépidas e especulativas ou para as confusões de falsos progressistas: o casal Ortega-Murillo pretende acabar com o jornalismo independente.
Sua ânsia de poder não admite críticas. Para eles, não há espaço para a liberdade de pensamento. Quem pensa diferente e se atreve a expressá-lo deve ser preso ou exilado.
O colega Emilio García-Ruiz, diretor do San Francisco Chronicle, disse recentemente numa entrevista que a primeira coisa que um fascista faz é atacar a imprensa. Na América Latina, nós sabemos disso muito bem. E não nos surpreende.
O que continua nos surpreendendo é que intelectuais e políticos supostamente progressistas continuem apoiando ditadores como Ortega. Ou não surpreende, já que os extremos ideológicos são sempre parecidos. Fica cada vez mais difícil distinguir os populistas de direita e os de esquerda.
Estima-se que desde junho de 2021, cerca de 75 jornalistas e proprietários de veículos de comunicação foram forçados ao exílio. E depois da grande farsa eleitoral de 7 de novembro, o sistema de justiça do regime encenou julgamentos simulados de dirigentes, ativistas e de seis jornalistas, três deles executivos do La Prensa, que foram condenados irregularmente a vários anos de prisão. Entre eles está nosso vice-presidente regional, Juan Lorenzo Holmann Chamorro, gerente-geral desse marco do jornalismo nicaraguense.
Este ataque à liberdade de imprensa completa a investida que começou no ano passado com o ataque às instalações do La Prensa, do Confidencial e 100% Noticias.
Erguemos a nossa voz para dizer: Daniel Ortega, pare de trair o ideal de liberdade do povo nicaraguense que antes defendeu e agora reprime com selvageria.
A Nicarágua está se tornando cada vez mais semelhante à Cuba de Castro, onde dois colegas tiveram que se exilar recentemente e onde outros dois foram presos.
Na ilha, continuam a perseguição e os ataques aos jornalistas, as penas de prisão por se exigir mais liberdade e as restrições à prática do jornalismo. Há também a vigilância digital, como em El Salvador e na Venezuela.
A deterioração acelerada da liberdade de imprensa no Peru, sob a administração de Pedro Castillo, também é alarmante.
Volto então aos textos de Harari com os quais comecei este resumo do período. Como na Ucrânia, em matéria de liberdades públicas e de direitos dos cidadãos, a região envia sinais de alarme que a SIP procura detectar a tempo.
Porque somente com uma forte e oportuna reação internacional podemos tentar conter a tempo a escalada dos conflitos, como está acontecendo na Europa, ou impedir a degradação institucional que está ocorrendo atualmente em Cuba, na Nicarágua e na Venezuela. Ou cenários de extrema violência, como os do México e de vários países da América Central.
Em todos esses casos, a pós-verdade, a manipulação de informações e a disseminação de "narrativas" que se repetem como verdades estabelecidas estão frequentemente presentes. Apela-se para "causas justas" e "verdades superiores", para justificar o descrédito, a perseguição administrativa, ações judiciais falsificadas, a privação ilegal de um direito, expropriação, prisão....
Aqueles que dizem representar o povo entendem que qualquer crítica a eles é um ataque a um princípio superior. Desconhecem, assim, o direito legítimo e inalienável dos cidadãos de controlar os atos do governo.
Mesmo em democracias estabelecidas, como as do Canadá e dos Estados Unidos, há denúncias de obstáculos constantes ao acesso à informação pública. E no caso dos Estados Unidos, os casos de assédio judicial à mídia persistem, assim como os ataques a jornalistas que cobrem protestos sociais.
Apreciamos e agradecemos os esforços feitos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e em particular pela Relatoria Especial sobre Liberdade de Expressão, para que esta realidade seja conhecida.
Mas devemos continuar trabalhando. E faremos isso junto com organizações irmãs na região e no resto do mundo; junto com organizações multilaterais; junto com veículos de comunicação e agências de notícias internacionais.
Para que o assunto não saia da agenda.
Para que o despotismo e a censura não sejam normalizados.
Para pararmos de tropeçar na mesma pedra.
Nas próximas horas daremos voz, nesta reunião, aos parentes dos perseguidos e detidos pela ditadura de Daniel Ortega e Rosario Murillo. E juntamente com quase três dúzias de organizações irmãs em nível global ou continental, apresentaremos um plano de ação para que a Nicarágua recupere uma estrutura de liberdade e debate cidadão.
Aqui na SIP, aqui nesta Comissão para a Liberdade de Imprensa, continuaremos tomando medidas e criando alianças nesse sentido.
Este ano apresentaremos uma nova edição do Índice Chapultepec, nossa avaliação anual da liberdade de imprensa nas Américas. Publicaremos também um livro que reflete o processo de elaboração da pesquisa e a análise que ela nos permite fazer sobre a estrutura que envolve o exercício da atividade jornalística em cada país.
E na próxima quinta-feira lançaremos formalmente o SIPBot, uma nova ferramenta que utiliza inteligência artificial para medir em tempo real o nível de liberdade no jornalismo.
Além disso, e o mais importante, ela nos permite coletar e processar mais rapidamente as queixas de violações do direito humano essencial de divulgar e receber informações e opiniões.
Finalmente, alguns eventos positivos que ocorreram nos últimos meses.
O mais recente é a apresentação do projeto de lei de negociação entre a mídia e as plataformas no Canadá, que tem como objetivo garantir uma imprensa livre e independente.
Também destacamos na ocasião a condenação judicial no Brasil dos autores do assassinato de Pablo Medina e sua assistente no Paraguai em outubro de 2014; a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos em favor do El Universo, seu colunista político e seus diretores que haviam sido processados pelo então presidente Rafael Correa; a revogação da Lei do Sigilo em Honduras; o projeto de lei sobre a proteção de jornalistas no Paraguai; e iniciativas legislativas sobre a proteção de fontes confidenciais em Porto Rico.
Essas boas notícias não compensam o panorama sombrio que descrevemos acima.
Mas elas nos permitem redobrar nossa esperança e nossa vontade de lutar pela liberdade de imprensa e pela liberdade de expressão em todo o continente.
Não vamos desistir diante da barbárie.
Façamos ouvir nossas vozes.
Vamos exigir que os governos de todo o continente – em nível nacional, estadual e local - ofereçam garantias plenas para o exercício do trabalho jornalístico.
Que respeitem e garantam o respeito ao direito dos cidadãos de receber e disseminar informações sem censura ou pressão.
Aos discursos dos autocratas que querem um mundo livre de jornalistas, respondamos que "não há pessoas e sociedades livres sem liberdade de expressão e liberdade de imprensa".
Porque, como dizem as palavras iniciais de nossa Declaração de Chapultepec, "uma imprensa livre é uma condição fundamental para que as sociedades resolvam seus conflitos, promovam o bem-estar e protejam sua liberdade".