ARGENTINA

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No início de um ano de ano de eleições presidenciais, estaduais e municipais que serão cruciais para a Argentina, a situação do jornalismo torna-se cada vez mais complexa. A descoberta do corpo do promotor Alberto Nisman, morto com um tiro na cabeça um dia antes de ele comparecer ao Congresso para apresentar uma denúncia contra a presidente do país, vem comovendo seus cidadãos há um mês e meio. O governo reagiu acusando setores da justiça e a mídia de estarem fazendo manobras de desestabilização política. A presidente Cristina Kirchner atacou a mídia pela cobertura do gigantesco protesto que foi realizado quando se completou um mês da morte do promotor, referiu-se novamente à “cadeia nacional de ódio e desânimo”, acusou o Clarín e o La Nación de apropriação da empresa Papel Prensa e afirmou que a liberdade de expressão é privilégio aparentemente exclusivo desses jornais. Na sua primeira declaração pública sobre o incidente, Cristina Kirchner levantou a hipótese de conspiração e sugeriu que as manchetes do jornal Clarín estavam relacionadas com a denúncia do promotor morto. Depois, a presidente apresentou uma hipótese que vinculava o Grupo Clarín a Diego Lagomarsino, único réu no caso por ter fornecido a pistola que foi encontrada ao lado do corpo de Nisman, e afirmou, erroneamente, que seu irmão era diretor de informática da empresa jornalística. Por sua vez, o conselho nacional do Partido Justicialista acusou o La Nación e o Clarín de "tentarem difamar a presidente com um objetivo nitidamente desestabilizador”. Uma preocupante investida contra o Clarín ocorreu quando o chefe de gabinete, Jorge Capitanich, imitando o hábito do presidente Rafael Correa, rasgou em pedaços duas páginas do jornal durante uma coletiva de imprensa. Damián Patcher, o jornalista que noticiou a morte de Nisman, decidiu se exilar em Israel e denunciou que temia por sua segurança. A agência oficial de notícias Télam e a Casa Rosada difundiram, na sua conta do Twitter, informações e imagens com dados da passagem aérea do jornalista fornecidos pela empresa estatal Aerolíneas Argentinas. A embaixada da Bélgica em Buenos Aires enviou ao Ministério das Relações Exteriores da Argentina um pedido de proteção consular solicitado pela jornalista belgo-espanhola Teresita Dussart, que expressou sua preocupação por ter sido hostilizada nos meios de comunicação governistas por causa da sua cobertura do caso Nisman. Nos últimos dias, ocorreram vários incidentes que são indícios da perseguição que sofrem os editores de jornais que criticam o governo, realizada por meio de ações criminais e que parecem ter ligação com a cobertura do caso Nisman. O governo reviveu a velha acusação contra diretores desses jornais por crimes contra a humanidade na aquisição da empresa Papel Prensa, questão que já havia sido julgada de forma democrática, descartando-se qualquer crime. Nesse contexto, nas últimas semanas foram feitas pressões sobre o juiz do caso, tanto em discursos presidenciais quanto em mensagens da agência oficial de notícias, sugerindo diretamente que se abriria inquérito contra os editores. Nesse mesmo sentido, no final do ano e a pedido da Procuradoria-Geral (alinhada ao Poder Executivo), o promotor do caso foi repentinamente afastado e nomeou-se, em um procedimento questionável, um promotor substituto que é membro de um grupo próximo ao governo. Antes da morte do promotor, a imprensa já trabalhava em um clima de declarações hostis e difamatórias vindas de membros do governo, medidas governamentais tomadas com base em discriminação e que restringiam a liberdade de expressão. Em 11 de fevereiro, durante uma teleconferência com a presidente, o ministro e pré-candidato à presidência, Florencio Randazzo, afirmou que a mídia “só faz omitir informações, deturpar, faltar com a verdade, respondendo a interesses muito distantes daqueles que dizem defender”. Em 10 de fevereiro, um comunicado da agência estatal Télam afirmou que a empresa de serviços a cabo do Grupo Clarín possuía contas bancárias não declaradas na Suíça, apesar de o grupo afirmar que as contas eram legalmente registadas perante a autoridade fiscal argentina para pagamento de obrigações no exterior. As verbas para publicidade oficial continuaram aumentando no último semestre. Em fevereiro, o governo anunciou um aumento por decreto das verbas destinadas à divulgação das medidas do governo no equivalente a 21 milhões de dólares no câmbio oficial. Isso significa que a verba do governo durante 2014 superou os 200 milhões de dólares, praticamente o dobro do aprovado pelo Congresso. Se a isso se somarem os anúncios dos órgãos descentralizados e das empresas estatais, os gastos publicitários para o programa “Futebol para Todos” e a manutenção dos meios de comunicação do governo, esse valor triplica. Além do crescimento exponencial da publicidade oficial nos últimos anos, são igualmente preocupantes os critérios discriminatórios usados para distribuição de verbas para a publicidade oficial. Essa distribuição continua sendo feita de acordo com critérios editoriais, em contradição aberta ao estabelecido pela Corte Suprema de Justiça nas suas decisões e às recomendações feitas pela Relatoria para Liberdade de Expressão da OEA, entre outros órgãos internacionais. Esta prática não é exclusiva do governo do país. O governo da cidade de Buenos Aires aumentou a verba para publicidade oficial de forma exponencial desde que chegou ao poder. E na província de Buenos Aires, para citar outro grande distrito argentino, inundou as ruas com anúncios que ostentam a cor do partido do governador,  lançando com todo ímpeto, e antes do prazo permitido por lei, sua campanha para presidente. Em termos legais, em novembro o juiz federal de Bahía Blanca, Santiago Ulpiano Martínez, indiciou por ocultação Germán Sasso, diretor da rádio e website “La Brújula 24”, medida que se somou à revistas das instalações e ao sequestro de material jornalístico, o que implica uma pressão clara afetando a proteção constitucional do direito à proteção das fontes jornalísticas. Em 12 de dezembro, o juiz Horacio Alfonso emitiu uma liminar que suspendeu o desmembramento forçado dos meios do Grupo Clarín, previamente determinado pela AFSCA, por meio de uma medida que indica um uso discriminatório e instrumental da lei, contrariando o acórdão da Corte Suprema de Justiça que exige igualdade de tratamento da aplicação da lei de meios de comunicação.  Duas semanas atrás, uma decisão de segunda instância manteve a decisão do juiz Alfonso.  Paralelamente, dez prestigiados jornalistas do Grupo Clarín obtiveram uma liminar, concedida pelo juiz Paul Cayssials, que suspendeu o desmembramento desses meios por colocar em risco suas fontes de trabalho e sua liberdade de expressão. Também em dezembro, no dia 16, a maioria do governo aprovou na Câmara dos Deputados uma lei que regula o mercado de telecomunicações, favorecendo as empresas telefônicas e eliminando as restrições impostas pela Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual para que ofereçam serviços audiovisuais. Anteriormente, e apesar das restrições da AFSCA, a autoridade de aplicação da lei de serviços de comunicação, aprovou-se o plano de adequação apresentado por um dos canais de televisão de propriedade da Telefónica. Enquanto isso, o flagelo do tráfico de drogas continua a se espalhar pela Argentina e começa a afetar seriamente o livre exercício do jornalismo. Em 13 de novembro, Germán de los Santos, correspondente do La Nación na cidade de Rosario, recebeu ameaças de morte por telefone e relacionadas com suas matérias sobre as atividades de gangues naquela cidade. O jornalista e sua família tiveram que deixar Rosario e fazem parte agora de um programa de proteção policial para garantir sua segurança. Esse caso acrescenta-se a outros casos anteriores e semelhantes que indicam o crescimento de uma ameaça grave para a imprensa, até pouco tempo incomum na Argentina.

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