Argentina

Aa

Relatório à 75ª Assembléia Geral da SIP

4 a 7 de outubro de 2019

Coral Gables, Flórida

$.-

No período coberto por este relatório, a imprensa continuou atuando num ambiente de respeito à liberdade de expressão, sem represálias nem perseguições sistemáticas do governo. Porém, a situação econômica continua colocando em risco a sustentabilidade das empresas jornalísticas. Nos últimos relatórios, afirmamos que a mídia, sobretudo os jornais, vivia uma "verdadeira tempestade". A crise cambial em abril do ano passado somou-se à desvalorização de 50% da moeda, provocando uma grave recessão. Desde então, os meios de comunicação registraram uma queda na sua receita com publicidade, resultante dos cancelamentos de campanhas publicitárias e da diminuição de anúncios. Para a mídia impressa, um fator agravante foi o custo do papel, que imediatamente dobrou, em nível internacional.

Desde 11 de agosto, como resultado do impacto das eleições primárias, a moeda sofreu uma nova e grande desvalorização, e o risco-país passou de menos de 900 pontos-base para mais de 2.500. O governo renegociou os pagamentos da dívida pública e restringiu a compra de dólares quando constatou que os depósitos bancários e as reservas do Banco Central haviam sofrido uma queda pronunciada. Não há dúvida de que o medo, próprio das mais graves crises argentinas, ressurgiu. A viabilidade das empresas jornalísticas corre sério risco, não só por questões econômicas, mas também porque se repetem os problemas ligados à liberdade de imprensa dos governos anteriores.


A ação contra o jornalista Daniel Santoro, movida em agosto, é o caso mais alarmante deste período. O juiz federal de Dolores, Alejo Ramos Padilla, decidiu promover a ação como parte do processo conhecido como "D'Alessio", que investiga vários casos de extorsão. Não existem, nos autos do processo, elementos que vinculem o jornalista a esses crimes. Organizações como a Associação de Entidades Jornalísticas Argentinas (ADEPA, em espanhol), o Foro de Jornalismo Argentino (FOPEA, em espanhol), a Academia Nacional de Jornalismo da Argentina e a SIP expressaram sua preocupação diante dessa decisão judicial que criminaliza o trabalho jornalístico e ignora a proteção ao sigilo das fontes prevista na Constituição. O juiz requisitou o registro das chamadas telefônicas do jornalista, o que violaria o sigilo das fontes. As advertências de Ramos Padilla sobre uma possível obstrução da investigação se o jornalista continuasse seu trabalho funcionam como uma mordaça. A decisão do juiz de intervir junto à "Comissão Provincial da Memória" para que esta comissão decida se os artigos de Santoro constituiriam uma ação psicológica implica conceder uma função improcedente a um órgão que está fora da esfera judicial. A decisão cria, desta forma, um precedente perigoso para a liberdade de imprensa, que pode fazer com que a autocensura entre os jornalistas aumente. A decisão judicial é uma tentativa de desacreditar a chamada "causa de los cuadernos" ("cadernos da corrupção") relacionada a uma investigação do La Nación que revelou a maior trama de corrupção da história da Argentina.

Em junho, a juíza María Edith Rodríguez, de Garantías 7, na província de Salta, notificou o órgão Ente Nacional de Comunicaciones de que os meios de comunicação locais e nacionais deveriam se abster de publicar imagens da banda "Los Nocheros" e de seus membros individualmente, durante a cobertura de uma ação judicial que inclui a prisão do filho de um dos membros da banda. Ordenou, também, que fossem eliminados "todos os registros informáticos de imagens, vídeos, dados, comentários, links, histórias, sites, vínculos a dispositivos de busca" relacionados à referida ação, e que contivessem imagens ou o nome de qualquer um dos integrantes da banda. Tal decisão configura nitidamente uma mordaça, uma tentativa de censura que é expressamente proibida pela Constituição.

Em agosto, o Poder Judiciário da província de Córdoba proibiu a mídia local de publicar um vídeo sobre um acidente de automóveis, em outro nítido ato de censura prévia.

A decisão da juíza Alicia Boromei, relacionada a uma ação de um funcionário público contra o site de notícias "Mendoza Post" e dois de seus jornalistas estabelece um montante que pode abalar o equilíbrio financeiro do site e é uma grave ameaça à liberdade de imprensa. O autor da ação se sentiu ofendido por informações publicadas numa notícia do site e que, na opinião da juíza, são conhecidamente falsas. Essa conclusão não tem base no processo e, portanto, a decisão judicial se desvia da doutrina de real malice (dolo real).

Entre as declarações de figuras públicas sobre a imprensa, são preocupantes a de Eugenio Zaffaroni, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos e ex-integrante da Suprema Corte de Justiça argentina. Ele propôs a retomada da chamada "Lei da mídia", que foi formulada no governo kirchnerista com o objetivo, basicamente, de desmembrar um grupo de mídia.

O diretor do Grupo América, Daniel Vila, denunciou em um programa de televisão que o presidente Mauricio Macri o pressionou para abrir mão de frequências que já haviam sido concedidas à sua empresa, Arlink. O promotor Guillermo Marijuan formalizou judicialmente a queixa e, depois de intimar e colher depoimento de Vila, decretou sigilo dos autos.

Entre os atos de intimidação a que foram submetidos jornalistas e mídia, cabe destacar a ameaça de bomba aos estúdios do canal Telefé, em meados de maio, incidente que não foi esclarecido pelas autoridades policiais. Em termos de agressões físicas, entre os casos mais recentes cabe destacar as feridas provocadas por pedras lançadas por membros do sindicato Luz e Fuerza e o impacto das balas de borracha da polícia da província de Córdoba que atingiram o cinegrafista Lucas Suárez e o repórter gráfico Daniel Cáceres, na cidade de Córdoba, no mês passado.

Na campanha eleitoral, a polarização política alimentou comportamentos intolerantes que afetaram diversos setores, entre eles o jornalístico. Isso se expressa em episódios que vão desde agressões verbais, como as sofridas pela jornalista María Eugenia Duffard na Feira do Livro de Buenos Aires, até propostas extremas, como a instituição de uma espécie de Conadep do jornalismo (Conadep era a Comissão destinada a investigar o desaparecimento de pessoas durante a ditadura militar), ideia apresentada por uma pessoa alinhada com o kirchnerismo e que não foi condenada com contundência suficiente.

A falta de uma rejeição categórica das ações movidas contra jornalistas ou das propostas de medidas hostis que afetam a liberdade de expressão é duplamente preocupante diante da possibilidade de que o novo governo seja integrado por alguns dos mais destacados partidários do kirchnerismo. Como se sabe, durante os governos de Néstor e Cristina Kirchner, jornalistas e meios de comunicação sofreram uma investida que fez com que a Argentina entrasse para o grupo dos países com o maior nível de ataques à liberdade de imprensa. O candidato à presidência peronista afirmou que rejeita essas políticas e qualquer tipo de guerra contra o jornalismo.

Nas últimas horas, houve uma preocupante decisão de segunda instância que ordena reabrir uma investigação criminal contra dois jornalistas, Rodis Recalt, da revista Noticias, e Gerardo Young, então do programa Intratable da América TV, por ter publicado informações sobre um membro da Agência Federal de Inteligência (AFI). Essa pesquisa não apenas ignora a essência do trabalho jornalístico, que é acessar e publicar informações de interesse público, mas também coloca em risco o sigilo profissional e promove a autocensura.

Compartilhar

0